Charlene vive no paraíso, mas tem uma rotina infernal. Ela mora e trabalha em Maui, segunda maior ilha do Havaí, que abriga um santuário de baleias jubartes, cachoeiras de tirar o fôlego, vulcões majestosos e praias com ondas gigantes. Enfermeira, a jovem enfrenta turnos pesados num pronto-socorro, sob as ordens de um chefe irascível. Quando está em casa, precisa cuidar sozinha do pai idoso e do filho pequeno, Brandon. Certo dia, um incidente vira de cabeça para baixo o cotidiano de Charlene, que larga o emprego, abdica das tarefas domésticas e resolve passar horas estudando, com a intenção de entrar num curso de medicina. A moça considera que dedicou muito tempo às necessidades dos parentes e agora deseja se concentrar em si mesma. Enquanto mergulha na nova realidade, é surpreendida pela visita do irmão, Robbie, músico recém-chegado de uma modesta turnê por bares australianos. O sujeito, embora simpático, se revela um tanto folgado e não poupa a irmã de críticas descabidas. Ele a julga uma “pirralha” egoísta e negligente. Eis a trama da graphic novel Mais ninguém, que o ilustrador e cartunista R. Kikuo Johnson lançou em 2021 e que a Alta Books editou recentemente no Brasil. Natural de Maui, onde ambientou outra HQ, Night fisher, de 2005, o autor colabora há quase duas décadas com a revista The New Yorker. Várias capas da publicação trazem desenhos assinados por Johnson, também professor numa das melhores faculdades americanas de artes visuais, a Escola de Design de Rhode Island. A contenção garante a força e a beleza de Mais ninguém. Em 104 páginas, o livro aborda um problema recorrente nas sociedades patriarcais – a omissão masculina perante as demandas familiares – sem apelar para clichês feministas, digressões sociológicas ou panfletarismos. A maioria dos personagens fala pouco, e o enredo vai se desenrolando em torno de lacunas nunca preenchidas. A principal delas: por que o pai do garoto Brandon é ausente? Uma paleta econômica de cores e os traços nada rebuscados do autor enfatizam o minimalismo da narrativa, cujo tom oscila entre a melancolia e um discreto bom humor. Mais ninguém também se destaca pela maneira com que retrata o luto. O sentimento paira sobre Charlene, Robbie e Brandon. Os três, porém, nem sempre percebem (ou admitem) que a presença tão eloquente da morte os faz sofrer. De quebra, o livro denuncia as mazelas ecológicas de Maui. Plantações de cana ocuparam parte significativa da ilha até meados da década passada, quando as poluentes usinas de açúcar fecharam, graças à pressão de ativistas. Hoje, as mudanças climáticas e os estragos resultantes da exploração canavieira desencadeiam longos períodos de seca, que aumentam o risco de incêndios florestais. Não por acaso, em agosto de 2023, o fogo lambeu praticamente toda a cidade de Lahaina, na costa noroeste de Maui, e deixou cerca de cem mortos. Uma resenha do jornal The New York Times classificou Mais ninguém como “perfeita”. A apreciação é exagerada. Mas nenhum defeito da HQ é capaz de obscurecer as qualidades da sensível história contada por Johnson. |
Uma psicóloga entra numa sala onde há livros e puffs coloridos. Seu paciente, um menino de 13 anos, espera por ela de pé. Ela coloca suas oferendas na mesa: um copo de chocolate quente com marshmallows e um sanduíche, que trouxe para ele comer durante a sessão. Tudo está em ordem, salvo pelo fato de que o menino, Jamie, é acusado de matar uma colega de turma, e que ela está lá para dar um parecer psicológico ao tribunal que julgará seu destino. A cena compõe o terceiro episódio da minissérie Adolescência, que estreou na Netflix no dia 13 de março e já coleciona considerável aclamação popular e crítica. O embate entre a psicóloga (Erin Doherty) e Jamie (Owen Cooper) foi a primeira cena da série a ser gravada, e, como todos os quatro episódios, foi feita em plano-sequência. Ou seja, tudo filmado de uma só vez, sem cortes. Assim como a personagem de Doherty, examinamos, em vão, as reações daquele menino, em busca de uma explicação para o ato de violência brutal. O que levaria um jovem a esfaquear uma menina de sua idade? A série não é um programa sobre o crime ou sobre a investigação tortuosa atrás do culpado. Não há dúvidas de que Jamie matou a colega. A questão é que nunca saberemos, de fato, a razão do crime. Apesar do título, a minissérie não dá palco às suas vozes adolescentes. Salvo pelo momento em que o filho do detetive explica ao pai, atônito, a linguagem dos emojis nas redes sociais, os jovens de Adolescência não dividem conosco sua visão de mundo. Seguimos uma câmera inquieta como único ponto de vista, enquanto adultos perplexos percebem o quanto são alheios aos costumes da geração que estão criando. O machismo e a misoginia dos pais assumem outros contornos em seus filhos, deixando famílias, professores e psicólogos abismados. Ninguém previra a radicalização de Jamie, nem o perigo que seus momentos de fúria guardavam. A série, como seus personagens adultos, traz mais perguntas sobre a “machosfera” do que respostas. Quando a câmera é desligada ao final de cada episódio, a sensação é de que algo terrível cresce sob nossos pés. O plano-sequência não é algo novo no audiovisual. Hitchcock, Godard, Orson Welles e Sokurov são alguns dos diretores que o defenderam como uma forma de aproximar o cinema da realidade. Debates sobre se o cinema consegue, de fato, retratar a realidade à parte, o plano-sequência coloca o espectador no meio da ação. No primeiro episódio, acompanhamos Jamie e sua família pelas salas e corredores da delegacia. Sentimos as esperas, a burocracia de exames e advogados e depoimentos. Como Eddie, o pai do menino, chegamos ao interrogatório sem saber o que acontecera para justificar a apreensão. A câmera, que voa e atravessa janelas em alguns momentos, poderia tirar o foco da narrativa se fosse mero malabarismo técnico, mas não é o caso. Os criadores Jack Thorne e Stephen Graham souberam dosar: conteúdo e forma trabalham juntos e, como aos personagens, não nos deixam relaxar. |
O leitor mais atento da piauí sabe que uma das fontes de inspiração para a sua criação foi a New Yorker, revista semanal de jornalismo narrativo, humor, ficção e crítica de arte publicada pela editora Condé Nast, nos Estados Unidos, e que completa 100 anos em 2025. Uma das comemorações do centenário é a exposição A Century Of The New Yorker, inaugurada em fevereiro na biblioteca pública de Nova York e que permanecerá em cartaz por um ano, até fevereiro de 2026, com entrada gratuita. Para jornalistas e diletantes, a visita em si é um prato cheio, por recuperar a história daquela que é considerada a publicação editorial mais arguta de que se tem notícia. Mas, para quem gosta de literatura, o que se vê impressiona ainda mais. A exposição revela detalhes saborosos do mundo literário, pinçados sobretudo das correspondências entre escritores e seus editores na revista. Uma delas é uma carta escrita pelo autor russo Vladimir Nabokov, em que ele questionava muito gentilmente a editora de ficção Katherine White pelos cortes que havia feito em seu texto. “Eu fico muito grato por você corrigir os erros gramaticais, mas eu não acho que me agrada o fato de minhas frases longas serem tão reduzidas”, escreveu. Em outro exemplo da peculiar rotina de um editor da New Yorker, o fundador da revista, Harold Ross, foi interpelado por um de seus mais ilustres colaboradores, o escritor John O’Hara, sobre seus ganhos, que ele considerava insuficientes. “Querido Harold: eu quero mais dinheiro, eu quero mais dinheiro, eu quero mais dinheiro, eu quero mais dinheiro, eu quero mais dinheiro, eu quero mais dinheiro, eu quero mais dinheiro, eu quero mais dinheiro, eu quero mais dinheiro, eu quero mais dinheiro, eu quero mais dinheiro”, escreveu O’Hara, ao pedir aumento. Já a escritora Dorothy Parker chegou a elaborar uma lista que causou furor na redação e que levava o seguinte título: “Autores pouco atraentes cujos trabalhos eu admiro”. O primeiro nome do manuscrito era William Faulkner. Aldous Huxley, Thomas Mann e James Joyce também integravam o grupo de infelizes, na visão de Parker. Outra raridade da exposição é uma página extraída da cópia original de A Sangue Frio, de Truman Capote. O papel amarelado, enviado à revista em 1960, ainda continha as marcações de edição à caneta. Além da visita à exposição, a biblioteca é um programa à parte. Tudo é gratuito e aberto ao público, exceto nas salas em que os frequentadores estão, de fato, trabalhando ou lendo. |
Em Kyoto, no Japão, uma narradora observa, fascinada, um grupo de monges. As ações deles – narradas numa prosa lenta e evocativa – parecem remeter a protagonista às memórias de suas próprias tradições e a certos rituais afro-diaspóricos. “Anos antes daquela visita, a escritora que não sabia nada sobre o xintoísmo havia escrito: ‘Iansã é a mais budista dos orixás’, porque a Senhora das Tempestades ensina sobre os movimentos do mundo, a força, a delicadeza, a mutabilidade dos ventos, a flexibilidade, a impermanência das coisas.” É nessa tensão entre encontros de duas culturas distintas e lampejos de similaridades entre elas que Cidinha da Silva desenvolve seu conto O monge, o licuri, e o Makotinho de Iansã, publicado na edição de abril da piauí. |