POR GERSON NOGUEIRA Bob Dylan nunca foi (ou será) suficientemente desvendado. Canções poderosas permitem montar um mosaico do pensamento e da obra do bardo de Minesotta, mas não há como sinalizar com clareza quem de fato ele é. Por isso, "A Complete Unknown" (Um Completo Desconhecido) é um filme maravilhosamente honesto sobre o cantor/compositor que revolucionou a música nos 20 anos iniciais de sua carreira. Permanece até o fim fiel à história de Dylan, um completo e genial desconhecido. Thimothée Chalamet, mais conhecido pela presença no blockbuster "Duna", dá vida a um Dylan que avança altivo e determinado sobre as pedras da previsibilidade. Canta, toca harmônica, sola guitarra e violão com um esmero que torna o filme ainda mais verdadeiro. Detalhe: Chalamet passou cinco anos estudando o personagem e aprendendo a tocar/cantar exatamente como Dylan. Ninguém espere ver no filme aqueles trejeitos ridículos de outras cinebiografias, como a caricata representação de Freddie Mercury, dublado no oscarizado "Bohemian Rhapsody" (2018). A cinebiografia que está em cartaz no mundo todo é cirúrgica e generosa na abordagem dos cinco anos da iniciante saga de Dylan. Captura o alvorecer do gênio, quando florescem as canções que iriam moldar o caráter definitivo e revolucionário de sua obra. (Depois disso, ele ainda iria compor vários outros clássicos, mas aí já é um outro papo). Impressiona como o diretor James Mangold conseguiu sintetizar em 2h20 de narrativa hipnotizante a essência daquele pós-adolescente caminhando pelas ruas do Village em Nova York e percorrendo bares enfumaçados nos primórdios de seu perfil errático, caracterizado desde sempre por um traço permanentemente subversivo: o de desafiar/contrariar o coro dos contentes. Fantástica reconstituição de época, em alguns momentos flertando com tons em sépia. Em entrevista recente, Mangold conta que passou "vários dias maravilhosamente encantadores" conversando apenas com Dylan: "Tenho um roteiro que foi anotado pessoalmente por ele. Ele adora filmes. A primeira vez que me sentei com Bob, uma das primeiras coisas que ele me disse foi: 'Eu amo Cop Land, cara'." Cabe dizer que é de Mangold uma outra cinebiografia respeitável, "Walk the Line" (Johnny & June), de 2005, sobre o cantor de country rock Johnny Cash e sua mulher, June Carter. No filme de Dylan, Cash é retratado brilhantemente por Boyd Holbrook. Aliás, vamos combinar, todos estão muitíssimo bem, o que atesta a qualidade da obra. Quando todos, inclusive seu mentor Pete Seeger, vivido magistralmente por Edward Norton, imaginavam um Dylan amestrado pelo fundamentalismo do folk americano, eis que ele emerge, raivoso e torto, impondo guitarras elétricas distorcidas no sacrossanto Festival de Newport, em 1965, ponto culminante e mais rock'n'roll de "A Complete Unknown". O som e a fúria. As imagens do público dividido, vaiando no começo e depois rendendo-se em aplausos, revelam fielmente o turbilhão que Dylan precisou enfrentar naqueles trepidantes anos 60, lutando para tentar ser ele mesmo e confrontar quem desejava conduzi-lo a outras frentes sonoras. Sem jamais deixar de lado a fúria politizada de sua poesia. Chalamet como Dylan merece todos os aplausos - e premiações - pela atuação espetacular. Monica Barbaro, como Joan Baez, está impecável, cantando como se fosse a própria e intensa como a namorada do cantor. Sobre Norton já falei ali em cima. Elle Fanning, a mocinha de "Um Dia de Chuva em Nova York" (filme de Woody Allen, de 2018, com Chalamet como par romântico), enche a tela como Sylvie. Na verdade, ela faz o papel de Suze Rotolo, a musa maior de Dylan, inspiradora de várias canções e com quem ele dividiu a capa do LP "The Freewheelin' Bob Dylan", de 1963. O nome foi trocado no filme a pedido do homenageado. Assisti "A Complete Unknown" por duas vezes e certamente encaro uma terceira. Fui logo na estreia em 27 de fevereiro, dando-me um presente pessoal pelo aniversário de 67 anos - costumo, sempre que possível, rasgar a folhinha com trilha sonora de responsa; foi assim em 2018, no Maraca, com um show catártico do Pearl Jam carimbando meus 60 anos. Com apenas 2 minutos de filme rolando, eu já estava abduzido pela atmosfera dos 60/70. Um punhado de músicas geniais pontuando a narrativa, a poesia áspera e cortante saltando na tela e fazendo entender o Nobel de Literatura a ele outorgado em 2016. Impossível não se deixar seduzir, principalmente para um fiel devoto da obra de Dylan. Saí do cinema entorpecido, compartilhando de cara minhas impressões a amigos muito especiais, como Edyr Augusto, Regina Alves, Nelson Maués e Edgar Augusto. Uma semana depois, ainda impactado, voltei para atestar a veracidade da coisa. E, confesso, fiquei ainda mais impactado. Óbvio que este texto, que entrega o fã que sempre fui, não pretende ser imparcial, nem poderia. Dylan personifica o astro pop ideal, aliando talento e destemor. John Lennon e Jim Morrison eram do mesmo jeito, mas se foram espertamente antes do Apocalipse. Moleque ainda, eu ouvia o disco "Bob Dylan's Greatest Hits" (1967), tentando decodificar as camadas de gigantismo por baixo daquela voz fanha e do inconfundível som de harmônica. Passei a entender bem mais a partir de "Blood on the Tracks", discaço de 1975. A partir daí, a imersão foi se completando, desaguando em "Real Live", álbum ao vivo da turnê europeia de 1984, quando o mito (este, sim!) dividiu palco com os craques Mick Taylor, Nicky Hopkins e Colin Allen. Resumo da ópera: somos todos agradecidos (ou devíamos ser) pela contemporaneidade com o gênio Dylan, nosso mais brilhante desconhecido. Que sorte imensa. Abaixo, o belíssimo making-of do filme. |