16 novembro, 2024

Dicas Culturais da revista piauí

 

Malu, o primeiro longa-metragem do diretor Pedro Freire, não poderia ter sido mais bem-sucedido no último Festival do Rio, onde levou os prêmios de melhor filme, melhor roteiro, melhor atriz e melhor atriz coadjuvante. Desde então, vem enchendo as salas por onde passa. O filme é um caso raro de consenso entre crítica e público, e merece a atenção que vem recebendo.

O longa conta a história de Malu Rocha, uma atriz brasileira que viveu o auge de sua carreira no teatro, no cinema e na tevê durante os anos 1970 e 1980, e depois foi morar com a mãe num subúrbio do Rio. Freire retrata a fase do ocaso profissional da atriz, que coincide com o período em que passou a manifestar os primeiros sintomas de uma doença degenerativa que lhe atacou o sistema nervoso – o mal de príon (ela faleceu em 2013, e seu corpo foi velado no Teatro Oficina).

O que torna o filme peculiar é o fato de que Malu Rocha (vivida na tela por Yara de Novaes, numa atuação impecável) é a mãe do diretor Pedro Freire. Com fortes elementos autobiográficos, a história é uma versão ficcional do que ele viveu durante a adolescência enquanto via a mãe se esvair entre planos irrealizáveis, acessos de raiva e momentos de pura doçura. Alternando momentos de bebedeira e delírios artísticos, Malu tem saudade de um passado, especialmente do pensamento crítico de uma geração que sonhou em mudar o país, mas acabou cerceada pela ditadura militar. 

A história se passa no interior da casa onde Malu morou com sua mãe – interpretada pela excelente Juliana Carneiro da Cunha – e sua filha, uma jovem aspirante a atriz, vivida pela ótima Carol Duarte. As três vivem numa ciranda de amor e caos, num ambiente de precariedade material e deterioração dos afetos, que vão se esgarçando ao limite. A tensão narrativa paira no ar, enquanto sentimos a atmosfera de uma casa em ruínas. 

O filme é uma declaração de amor e pesar do diretor para sua mãe, uma mulher tão fascinante quanto incômoda, que provoca sentimentos de compaixão e repulsa. O resultado é a homenagem do filho maduro que soube transformar em arte a experiência de ter vivido sob o impacto da loucura.

A edição brasileira de Tremor, do escritor americano-nigeriano Teju Cole, pela Companhia das Letras, já chama atenção pela capa. A ilustração, de Elisa von Randow, pega o leitor pelo brilho dourado discreto, mas também pela semelhança com a capa do álbum Unknown Pleasures, da banda de rock inglesa Joy Division. Aproximar-se e rememorar identificações para apresentar pontos e perspectivas novas: essa parece ser a estratégia não só da capa, mas do livro.

A história começa com uma crise de casamento entre Tunde, o protagonista, e Sadako, sua mulher. A impressão é de que a história se desenrolará a partir daí, com uma linha fixa rígida. Amor, encontros e desencontros são coisa grande, e Cole poderia se deixar tomar por esse fio narrativo.

Não é bem o que acontece. Como em Cidade Aberta, seu primeiro romance, a narrativa se torna mais densa, e pouco a pouco vozes de outros personagens entram na trama. É preciso confiar em Cole, e se deixar levar pelo fluxo. Assim, discussões sobre arte, e questionamentos bem-humorados (ou cínicos) sobre a sociedade caminham junto com histórias pessoais. Como a de uma senhora, que, com ajuda de um empréstimo, constrói uma escola para surdos. Em estado constante de prejuízo, ela depois converte o negócio em uma boate, de situação financeira sustentável, e se dá por satisfeita.

Tremor é um livro arriscado, em que os personagens colocam seus valores junto a dúvidas, assim como acontece na vida. O debate sobre reparações históricas anda junto com comentários sobre formas de lazer na Nigéria. Cole – que é historiador da arte e foi crítico de fotografia do New York Times – pensa a crítica de arte fora dos moldes tradicionais, o que é fascinante de se ler. 

Um elogio comum a livros é que podem ser lidos “num fôlego só”. Mas no caso de Cole, a tendência se inverte: seus livros devem ser lidos com calma. Cole é profundo e fervilhante de tal modo que é preciso fazer pausas. Pausas rápidas para voltar ao livro com um entendimento encarnado do que o autor está tratando. O final de Tremor é surpreendente e desconcertante e deixa uma vontade de seguir viagem novamente.

Esta minissérie de sete episódios é um thriller psicológico que carrega nas tintas da primeira à última cena. Pode ser visto como um melodrama ou um novelão, mas diante da escassez de coisas boas para assistir em casa nessa temporada, vale uma boa espiada. Cate Blanchett estrela como Catherine Ravenscroft, uma jornalista premiada que fez fama com reportagens investigativas. À primeira vista, ela vive no melhor dos mundos: está no topo da carreira, é elegante, mora em uma bela casa com o marido bem-sucedido e o filho único do casal. Mas, de repente, um drama do passado que estava muito bem escondido ameaça manchar esse ambiente perfeito.

O segredo desponta sob a forma de um livro misterioso que joga na lama a um só tempo a reputação da jornalista, da mulher e da mãe. A vida de Catherine começa a ir pelo ralo. A trama é muito bem construída, com uma narração que parece emergir das palavras do livro. Além de Blanchett, a série traz no elenco Sacha Baron Cohen (irreconhecível num papel sério e com um estranhíssimo cabelo alisado, provavelmente uma peruca) e Kevin Kline (excelente como um velhinho ora frágil, ora malvado). A direção é de Alfonso Cuarón, o cineasta mexicano que assinou alguns longas de grande sucesso, como Gravidade e Roma . 

Em Disclaimer , já devemos desconfiar do sentido da palavra que dá título à série, que pode significar “isenção de responsabilidade”, mas também “desmentido”. E isso pode ajudar a entender para onde aponta o desfecho da trama. Desfecho que, aliás, dividiu opiniões na redação da piauí , e que rende bom tema de discussão em mesa de bar. Será que é possível “desver” o que nos trouxe até o final, e aceitar uma narrativa completamente nova? Difícil responder.

“Eu amava meu gato, e em função desse amor, acredito que ele teve uma vida extraordinária. Mas talvez ele não tenha tido uma vida extraordinária a ponto de justificar esse texto. Então por que escrevo? Sei que não é para elaborar um luto, ou para exorcizar uma dor.” Na edição de novembro da piauí , o jornalista Roberto Kaz – redator do piauí Herald – escreve  sobre a vida de Aderbal, o gato com quem conviveu por dezoito anos, falecido recentemente. Não é realmente um obituário. Fazendo um “inventário de momentos marcantes” da vida do animal, “sem nenhuma ordem cronológica”, Kaz acaba, inevitavelmente, escrevendo também sobre a própria vida e as próprias memórias. Mas o texto não é autocentrado. Hesitante para não sentimentalizar a história de Aderbal e fazer jus à sua vida, recolhendo anedotas que vão e voltam no tempo, o repórter faz um relato sincero e ao mesmo tempo comovente, guiado menos por uma narrativa do que por uma curiosidade central: “Como será que era o mundo ouvido, sentido e visto pelo Aderbal?” 

Ilustração_Andrés_Sandoval_2010


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