A moda é a segunda indústria mais poluente do mundo, só perdendo para o petróleo. E a batata quente que faz arder ainda mais as mãos do setor é um outro gargalo: o descarte das peças. Não dá mais para fechar os olhos para os montes de roupas velhas que se acumulam nos aterros e podem demorar décadas - ou séculos, dependendo do tecido - para se decompor. Este problema bate cada vez mais forte nas portas das grandes varejistas, que comercializam um grande volume de mercadorias. A saída é investir na circularidade. E é isso que C&A decidiu fazer com o Movimento ReCiclo, que, desde 2017, espalha urnas nas lojas e convida consumidores a depositarem ali roupas que não usam mais. As peças são triadas, recuperadas e separadas para para doação, reciclagem e reaproveitamento. O que não estiver bom para ser doado passa por processos de desfibramento e transforma-se em novas peças, que voltam às prateleiras das lojas. A ideia deu tão certo que, neste mês, a rede divulgou um aumento de 30% na arrecadação em 2024. Desde sua criação, o ReCiclo já arrecadou um total de 350 mil peças de roupas.
Os números do projeto são grandiosos. No ano passado, a iniciativa coletou 78.522 peças de roupas. Deste total, 55.119 foram doadas a instituições sociais, enquanto 14.010 passaram por reciclagem e foram transformadas em estopas para uso industrial. Outras 9.393 peças de jeans foram desfibradas e voltaram para as lojas como uma nova coleção, o Jeans Circular. Além disso, foram garantidos o coprocessamento de 8,4 toneladas de resíduos têxteis, um processo que converte materiais descartados em combustíveis alternativos para indústrias. De acordo com Paulo Correa, CEO da C&A, cerca de 1 milhão de pessoas circulam todos os dias pelas 330 lojas da empresa espalhadas pelo país - é um fluxo quase do tamanho da população de uma cidade como Campinas. "Nem todo mundo vai comprar. Muitas pessoas só vão às lojas passear. Por que não aproveitar para deixar ali roupas que não querem mais? Investimos nesta comunicação", afirma o executivo, que aposta em ampliar ainda mais este projeto neste ano. Dentro das iniciativas sustentáveis mais recentes, a marca lançou uma coleção de jeans rastreáveis, 100% produzidos com algodão certificado e que trazem blockchain, oferecendo aos consumidores a possibilidade de acessar um QR Code que mostra todo o processo produtivo da peça até chegar à loja. "Estes jeans trazem atributos sustentáveis e o pioneirismo da rastreabilidade da moda. Tudo sem custar nada mais: a moda circular tem que estar ao alcance de todos", comenta Correa. Leia a seguir o que diz o executivo, em entrevista exclusiva a esta coluna. *** Ecoa: O Movimento ReCiclo é um exemplo prático de como a moda circular pode ser escalável? Paulo Correa: Sim. Estamos comemorando um aumento de 30% na arrecadação de roupas, no ano passado, algo como esvaziar 14 mil armários inteiros. Este volume crescente que aumenta de maneira significativa mostra que o formato e o processo estão sendo entendidos e valorizados pelos nossos clientes. Temos um fluxo de circulação muito alto: quase um milhão de pessoas todos os dias passam por uma loja da C&A. Então imagine todas estas pessoas vendo uma urna para descarte e doação. A visibilidade deste assunto vem aumentando e cada vez mais gente pensa: "Já que vou passar na C&A, aproveito para deixar uma sacolinha de roupas que não uso mais". Ecoa: O que vocês fazem com todas essas roupas? Paulo Correa: Muitas delas são recuperadas e doadas para ONGs e instituições parceiras que atendem pessoas com algum tipo de vulnerabilidade social. O que não estiver em bom estado é encaminhado a parceiros que vão fazer o desfibramento, ou seja, transformar aquela peça em fibras, que darão origem a novos tecidos. Então, você consegue dar uma segunda vida para essas peças. Com isso, vamos gerando uma história de reciclagem. Uma destas histórias mais bonitas foi o caso dos jeans, por exemplo. Conseguimos desenvolver uma tecnologia em que o fio, depois de desfibrado, pode ser tecido como um novo jeans. E essas peças viraram uma coleção, que foi premiada. Tudo feito a partir de doações. É a circularidade plena mesmo. É lindo ver a moda virar moda de novo. Eu acho que este é o futuro do mundo, quando será normal um movimento em que tudo se recicla e vamos usando sempre o mesmo material de formas diferentes. Ecoa: O brasileiro tem o hábito de descartar roupas com facilidade? Paulo Correa: Baseado em todas as pesquisas que tive acesso, posso dizer que a vida das roupas no armário do brasileiro é mais longa se comparada a consumidores de outros países. No Brasil, por questões sócio-econômicas não é todo mundo que pode ficar descartando tudo - diferentemente de países com mais poder aquisitivo, como Estados Unidos e Europa. Por outro lado, aqui somos mais solidários. Vemos na nossa sociedade diversos caminhos e organizações que viabilizam doações de peças e isso faz com que tenhamos mais possibilidades nessa dinâmica da reciclagem. Ecoa: A moda sustentável demanda um alto investimento da empresa, especialmente em novas tecnologias. Como este valor bate no caixa no final do dia? Paulo Correa: Claro que existe um investimento. As peças recicladas, o jeans rastreável, nada disso acontece sem esforço. Você precisa ter um time, ter pessoas dedicadas a esse trabalho de desenvolvimento. Depois tem que ter outras pessoas que ajudam os fornecedores, muitas vezes fazendo consultoria para mostrar como eles devem fazer para garantir que o processo saia com um nível de consumo mais consciente e mais sustentável. Então tudo isso demanda tempo e investimento. Isso cai no bolso das empresas? Cai. Mas aí entram as crenças. A gente entende que isso é importante. Para aquele tipo de empresa que está muito mais focada no curto prazo só e tentando maximizar o lucro, talvez isso não tenha tanta importância. Mas estamos falando de futuro, do futuro dos nossos filhos. Ecoa: E este investimento é repassado ao consumidor? Ele paga mais caro para ter uma peça sustentável? Paulo Correa: Não. O preço não pode ser mais alto. Caso contrário vira um negócio de nicho, só as pessoas mais descoladas e que têm mais grana poderão comprar. E não faz sentido. A C&A é um lugar de democracia, de inclusão, e não de nichos. Esta é a pimenta que torna a sustentabilidade aqui dentro um desafio ainda maior. |