Localizada na Serra da Mantiqueira, no extremo sul de Minas Gerais, a cidade de São José da Ventania é palco para as três novelas reunidas no volume que leva o nome do vilarejo, lançado pelo escritor e jornalista Roberto B. de Carvalho e editado pela Impressões de Minas. Os três relatos colocam em cena dramas dos moradores da cidade ambientados em algum momento entre os anos 1950 e 1960. As histórias se passam na mesma época e localidade, mas não se entrelaçam. São contadas pelo mesmo narrador, que reconstitui os casos que ouvia quando menino, contados pela empregada doméstica que trabalhava em sua casa. A vila onde as histórias se desenrolam é povoada pelas lembranças afetivas do autor, que nasceu e foi criado em Paraisópolis, cidade mineira que se chamava São José da Ventania até o começo do século XX. Os dramas de seus moradores são clássicos atemporais da condição humana: eles vivem histórias de intriga e amizade, apaixonamento e desilusão. A seu modo, a primeira novela reencena no Sul de Minas a Ofélia de Hamlet tal qual ficou eternizada na pintura do inglês John Everett Millais, prestes a se afogar num rio. A Ofélia de São José da Ventania vê seu mundo desmoronar após uma decepção amorosa, e seu destino é selado numa misteriosa mata de eucaliptos, o que dá ao relato uma pitada sobrenatural. Já Guerra santa, a novela central de São José da Ventania, é também a mais extensa e a mais arrebatadora. Seu título remete à violenta batalha travada pela Liga Católica da cidade contra uma peça de teatro. A obra sobre a Reforma protestante seria encenada na escola municipal por iniciativa da professora de história, uma forasteira malvista por alguns colegas. O protagonista do relato é o infame Major Laudônio, líder da Liga Católica e perpetrador de abusos de todo tipo às mulheres que o rodeiam, dono de um falso moralismo que virou figurinha fácil no Brasil contemporâneo. São José da Ventania é o primeiro livro de prosa que Carvalho assina sozinho; antes disso, ele já tinha lançado três volumes de poemas e participado da escrita a oito mãos de um romance policial. A capa é ilustrada com uma litogravura do artista Amilcar de Castro, o filho mais ilustre de Paraisópolis. As novelas são construídas com minúcias na escolha das palavras e um ritmo que recria a familiaridade e a urgência das conversas de copa e cozinha onde aquelas histórias começaram a tomar corpo na imaginação do narrador. A leitura harmoniza com broa de fubá e café preto. |
Quem consome rede social e cultura pop se deparou nas últimas semanas com memes e bordões oriundos de Beleza Fatal, da Max, a primeira novela feita para o streaming pela produtora americana. A trama é assinada pelo escritor Raphael Montes e dirigida por Maria de Médicis, sob supervisão de Silvio Abreu. Gira em torno de dois desejos de vingança: o de uma menina que se vê abandonada e órfã depois que sua mãe foi usada por uma prima golpista e inescrupulosa, e o de um casal que perdeu a filha após uma cirurgia de lipoaspiração feita por médicos que não honram o diploma. Costurando as duas tragédias, a protagonista da novela, Lola (Camila Pitanga), usa a prova de um crime para chantagear e conquistar o seu maior sonho, o de ser dona de uma clínica de estética. Raphael Montes é um dos raros escritores com sucesso de crítica e de público. Ele venceu o Prêmio Jabuti em 2020 na categoria “Romance de Entretenimento” com Uma Mulher no Escuro. A sua novela atual trata de muitos temas – alguns atuais e outros atemporais: a busca pela fama, a vida de mentira das redes, os exageros e absurdos do universo das clínicas de estética, a corrupção policial, as brigas entre irmãos em torno de poder e dinheiro. Há a discussão assustadoramente real e contemporânea em torno do gaslighting praticado pelo Dr. Rog (Marcelo Serrado) contra a sua mulher, Gisela (Julia Stockler), com consequências físicas e psicológicas devastadoras. Os capítulos se equilibram bem entre o drama e o humor. O casal protagonizado por Elvirinha (Giovanna Antonelli) e Lino (Augusto Madeira) é puro 171: eles dão churrascos usando carnes surrupiadas de mercados onde dão batidas se passando por agentes da vigilância sanitária; Lino trabalha como motorista de aplicativo usando carros alheios; Elvirinha dá consultas charlatonas como cartomante. O roteiro traz referências e inspirações de outras obras. Há a criança-tornada-adulta contra a futura patroa (Nina e Carminha, da novela Avenida Brasil , da Globo), um pai ambicioso e sem pudores que estimula a briga por sua sucessão entre os filhos ( Succession , série aclamada da Max), e os parentes que conseguem ir trabalhar dentro da residência de quem querem se vingar ( Parasita , longa metragem sul-coreano, melhor filme do Oscar em 2020). A novela mostra cenas de sexo, com duas ou mais pessoas, tem humor ácido e cenas de violência que não são pasteurizadas. A hipocrisia é um tema subjacente à trama, do médico perfeito e conservador que se apaixona por um funcionário à investigadora séria que se vende para aniquilar um caso. Apesar de suas qualidades, Beleza Fatal tem alguns descuidos de ambientação. Embora se passe no Rio, a cena em que o Dr. Rog foge supostamente na Lapa carioca foi gravada na região da Praça da República, em São Paulo. Há imagens aéreas de casas enormes que supostamente seriam do Rio que são, na verdade, residências do bairro do Pacaembu. Com Beleza Fatal, Montes, carioca do Méier, se lança como um dramaturgo capaz de deixar a Rede Globo mordida de ciúmes. A maior produtora de audiovisual do país tem amargado problemas com as produções recentes. A atual novela das 9, de autoria de João Emanuel Carneiro, Mania de Você, tem uma trama confusa e baixa audiência (Montes trabalhou como assistente de Carneiro em A Regra do Jogo, de 2015). A Globo quer se redimir com o remake de Vale Tudo, que estreia no dia 31 de março e será o principal produto para celebrar os sessenta anos da emissora. Mas bater o sucesso da politicamente incorreta Beleza Fatal não será nada fácil. |
Vejo num globo terrestre/de portaria de hotel/ a familiar carga larga/ e torta do Brasil/ simpática, geográfica/ não é história. O curto poema, escrito por Roberto Schwarz durante seu exílio na França, nos anos 1970, exprime a dubiedade que o crítico literário sempre enxergou no Brasil. Parecia, com sua cara larga e torta, um país deslocado do tempo e da história. Um lugar não propriamente periférico, mas jamais integrado ao circuito das potências; não mais escravocrata, mas não plenamente moderno. Terreno fértil para “as ideias fora do lugar”, expressão que serviu de título ao mais importante ensaio de Schwarz, em que o crítico, analisando a obra de Machado de Assis, faz uma leitura original sobre a “comédia ideológica” brasileira. O descompasso entre a ideologia dominante na metrópole e sua prática num país como o Brasil, argumenta Schwarz, nos permite enxergar com lentes críticas a ideologia em si mesma e seu jogo de aparências. É a “vantagem do atraso”. Schwarz é parte de uma geração de intelectuais marxistas que gravitavam em torno da USP e construíram, a partir dos anos 1960, uma importante escola de pensamento sobre a questão nacional. A história desse grupo é contada no ótimo livro Lugar periférico, ideias modernas, do sociólogo Fabio Mascaro Querido. Começando pelo famoso seminário de O Capital, organizado em 1958 por Fernando Henrique Cardoso e José Arthur Gianotti, Querido reconstitui a trajetória intelectual de autores como Francisco Oliveira, Florestan Fernandes, Paulo Arantes e sobretudo Schwarz, que serve como fio condutor da história. O livro é um elogio à teoria – que, embora seja muitas vezes estigmatizada como atividade de intelectuais sem contato com a realidade, tem implicações práticas na vida nacional. Nem por isso o livro é maçante. Querido transita bem entre a análise teórica e a história pessoal dos autores que retrata, incluindo algumas boas anedotas sobre a rixa entre marxistas Paulistas e cariocas. Uma delas trata de um encontro entre Schwarz e Leandro Konder, em 1968. Schwarz, à frente da revista Teoria e prática, havia encomendado uma resenha crítica a um livro escrito por Konder. Ao encontrá-lo por acaso, numa peça de teatro, comentou que os marxistas, por serem muitos poucos, passavam a mão na cabeça uns dos outros. “Precisamos nos esculhambar mais”, disse Schwarz, segundo as memórias do próprio Konder. Só então, um tanto constrangido, Schwarz informou o colega da tal resenha. Querido, ao resgatar histórias assim, nos faz sentir saudade de quando os intelectuais da esquerda se esculhambavam mais, no bom sentido da expressão. Tempos em que a ambição de pensar e transformar o Brasil não era exclusividade da extrema direita. |
As grandes tragédias humanitárias sempre colocam o artista contra a parede: como narrar a barbárie sem trivializá-la? Como contar uma história pessoal ou tecer reflexões que não sejam solipsistas demais frente ao extermínio de um povo ou uma guerra? Respostas satisfatórias para essas perguntas não existem, mas alguns artistas são mais propensos a tentar enfrentar o dilema em vez de evadi-lo. O cartunista americano Art Spiegelman, nascido na Suécia e radicado nos Estados Unidos, tonrou-se famoso por sua graphic novel Maus. Serializado de 1980 a 1991, o livro é uma espécie de autobiografia em que o alter ego do autor, sob a forma antropomórfica de um rato, entrevista seu pai, um emigré judeu polonês, sobre as experiências dele durante o Holocausto. Joe Sacco, quadrinista e jornalista, publicou entre 1993 e 1995 uma série de narrativas gráficas que viria a formar o livro Palestina, resultado de mais de uma centena de entrevistas que o autor fez com habitantes judeus e palestinos da Faixa de Gaza no início da década de 1990. Na edição de março da piauí, Sacco e Spiegelman se juntam num quadrinho escrito a quatro mãos onde seus alter egos se encontram e conversam sobre os ataques de 7 de outubro e o genocídio na Faixa de Gaza que se seguiu. |