Em 1994, presidente se envolveu em escândalo ao ser fotografado com Lilian Ramos, levada ao seu encontro por intermédio de Valdemar Costa Neto
Pela infame coincidência com o sobrenome, o fotógrafo Marcelo Carnaval, de O Globo, foi eternizado como o responsável pelo flagra que estampou a imprensa na folia de 1994, mas não foi o único a registrar a cena. A foto da capa de Veja — “O X da questão”, o X sobre a púbis — é de Paulo Araújo, pela agência O Dia. Pela Agência Estado, quem capturou o momento foi Wilson Pedrosa.
Num vídeo em que conta como foi o episódio, Pedrosa lembra que os jornalistas de Brasília que acompanhavam o presidente em suas viagens até Juiz de Fora foram avisados da decisão de última hora de Itamar ir ao desfile. Esse grupo de jornalistas só tinha credencial da Presidência da República e teve que se virar para ir até a Sapucai.
Da área de imprensa, a comitiva de fotojornalistas passou a reparar em uma mulher que chegou ao camarote presidencial no meio do desfile. Vestindo camisetão, encontrava-se aos risos, sorrisos, cochichos e falas ao pé do ouvido com Itamar. A paquera presidencial já renderia paparazzi por si só, mas não parou por aí. “O Itamar ficou ali com a moça fazendo pose de garanhão e conversando com ela que usava um vestitinho bem curtinho. Quando uma escola de samba passou, Itamar aplaudiu e levantou a mão, ela também. Foi aí que eu e outros fotógrafos percebemos que ela estava sem calcinha”, relatou Pedrosa num vídeo em que lembra do episódio.
Carnaval relata que ele não reconheceu a moça de imediato. Entre as presenças ilustres, lá estavam a cantora Gal Costa e alguns ministros de Estado, dentre os quais um ébrio Maurício Corrêa, então ministro da Justiça que, meses depois, viria a integrar o Supremo Tribunal Federal (STF).
O camarote, diga-se, era presidencial, mas Itamar era convidado, não anfitrião. Pertencia a Paulo de Almeida, então deputado federal (PTR-RJ) e presidente da Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro (Liesa).
Valdemar, pivô do encontro
Estrela de televisão nos anos 1990, a cearense Lilian Ramos, então com 29 anos, ganhou fama por ser sósia da cantora Fafá de Belém. Havia acabado de desfilar pela Grande Rio e, da avenida, trocou olhares e acenos com Itamar Franco. Lilian tinha um amigo em comum com Costa Neto e, a convite dele, acompanhava um camarote que congregava deputados do Partido Liberal (PL). Foi por intermédio de Valdemar que a modelo e o presidente se encontraram.
Neste ponto, os depoimentos se contradizem. Costa Neto diz que a modelo pediu para ir ao encontro de Itamar, e ela afirma que o deputado insistiu para que fosse ao camarote do presidente. Outro detalhe do qual Lilian não abre mão é de que, na verdade, não estava sem roupa íntima, mas com um collant — uma meia-calça ultra fina — cor de pele.
A estratégia, o clique e a sorte
De collant ou não, os fotógrafos se desdobravam para capturar a cena. “A única perspectiva que poderia ter produzido aquela foto é se jogassem a câmera no chão”, sugere Lilian Ramos. Segundo Marcelo Carnaval, a plataforma estava muito próxima da área de imprensa, não mais que dois metros. “A imprensa circulava por um corredor entre o camarote e a pista. O Itamar estava a meio metro, um metro acima da nossa cabeça”, relembra Carnaval. Era perto o bastante para que tivessem notado Lilian com clareza, mas a uma distância que ainda tornava difícil achar um bom ângulo para fotografar.
Paulo Araújo perguntou aos seguranças se poderia se aproximar mais da plataforma. “Só se for rápido”, consentiu o cordão de contenção. E, no ritmo do samba, foi montada uma estratégia. “No refrão do samba ela levantava os braços e rebolava”, explica Araújo.
Apesar dos esforços, nada garantia, naqueles tempos de tecnologia rústica, que a câmera havia capturado a cena. “Eu não sabia se eu tinha (a foto). Era aquilo: você dava um monte de clique, ia pro filme, e o filme acaba, só tem 36 lotes… Não tinha essa certeza”, diz Marcelo Carnaval. “Só ia saber o resultado depois de revelar. Você fotografava sem ver o espelho”, atesta Paulo Araújo. Para Lilian, esse é o aspecto “mais absurdo” da história. “Nem o fotógrafo sabia que tinha feito, o ouro que tinha na mão”, conta a modelo.
Pedrosa relata que um dos seguranças de Itamar foi avisado pelos fotógrafos do que estava acontecendo e foi avisar Maurício Corrêa. O então ministro da Justiça, segundo contou, só de deu conta mais tarde, foi quando Itamar falou no ouvido da modelo e pediu que ela se afastasse do local.
No dia seguinte, Costa Neto recebeu um telefonema de Lilian. “Me ligou às onze horas da manhã. Disse: Valdemar, o Itamar me convidou para jantar. — Que moral você está! Que bom....” E o que ninguém sabe, diz a máxima, ninguém estraga, mas a recíproca é verdadeira. Às duas da tarde, outra ligação. “O Itamar cancelou o jantar. — Cancelou? Por quê? — Eu não sei. Parece que tem umas fotos aí”.
‘Dignidade, honra e decoro’ do cargo
Já havia quem clamasse por mais um impeachment. Itamar Franco assumiu a presidência após o impedimento de Fernando Collor, de quem havia sido vice, e, agora, se via ameaçado por um trecho da Lei 1.079/1950 que previa a deposição do mandatário que procedesse “de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo”. Carnaval não era lugar de presidente da República, como Henrique Hargreaves havia lhe aconselhado.
Mas, a bem da verdade, o impeachment de Itamar nunca passou de bravata dos setores mais conservadores da política nacional: a iniciativa não contava nem com o apoio popular, nem respaldo jurídico, segundo especialistas ouvidos pela reportagem. “A violação de ‘decoro, honra e dignidade’ é a mais vaga das condutas na Lei do Impeachment”, diz Flávio de Leão Bastos Pereira, doutor em Direito Constitucional e professor universitário do Mackenzie.
A quebra de decoro passível de impedimento, segundo Flávio, só ocorre em casos que atentem, no momento do ato, contra a probidade na administração. Não seria o caso de Itamar, flagrado num momento de descontração. “Impeachment por quê? Porque um homem divorciado estava paquerando uma mulher solteira?”, sintetiza Lilian Ramos.
Contenção de danos
Por mais que o episódio tivesse constrangido Itamar ante a opinião pública, o efeito não teve um alcance tão grande. É o que revela uma pesquisa do InformEstado, instituto de pesquisas do Estadão, de 18 de fevereiro de 1994. Para 70% dos entrevistados, o comportamento do presidente foi inadequado. No entanto, a represália parava por aí: para 68% dos ouvidos, a imagem do presidente não tinha sido comprometida e, para 90%, um pedido de impeachment era descabido.
O InformEstado teve o cuidado de discriminar as opiniões por sexo e grau de instrução, além de questionar o que as fotos e reportagens representavam — “Invasão de privacidade” ou “Descuido com o decoro” — e o que o presidente queria demonstrar — “Que é ingênuo?”, “Que não se importa com a opinião pública?”, ou “Que, como homem, não poderia recuar diante de uma investida feminina?”.
O episódio levou o PL a um plano de contenção de danos. “Temos que contratar um assessor de imprensa pra você”, disse Álvaro Valle, fundador da sigla, a Valdemar Costa Neto. “Se não, você vai ser rotulado para o resto da vida como o ‘deputado da calcinha’”, explicou Valle. “Fiz o que ele falou. Contratei um assessor de imprensa que me ajudou muito e desmistificou essa história”, relembra Valdemar.
Alvo de sexismo e xenofobia
A foto também teve impacto na vida de Lilian Ramos. “Não teve o lado humano, do respeito. Muito machismo, também, como se eu tivesse me aproveitado do presidente, sendo que foi ele que paquerou comigo”, diz.
Além do sexismo, foi alvo de xenofobia. “A Dona Zica da Mangueira disse que o carnaval do Rio tinha sido ofuscado por uma ‘pau de arara’. É culpa minha, por acaso? Fui eu que fiz a foto? Eu que planejei isso?”, questiona Lilian. “Pau de arara” é um termo pejorativo utilizado para se referir ao povo nordestino.
Devastada com a repercussão, Lilian deixou o Brasil meses depois do episódio e passou as últimas décadas radicada na Itália, onde segue trabalhando como modelo até hoje.
Presidente pediu uma ‘lembrança’
Itamar Franco terminaria o mandato com uma aprovação que, até hoje, se mantém entre os maiores índices desde a redemocratização. Elegeu seu sucessor, Fernando Henrique Cardoso (PSDB), que o nomeou embaixador do Brasil em Portugal em 1995. Em 1998, foi eleito governador de Minas Gerais pelo PMDB (hoje, MDB) e permaneceu no cargo até 2002. Voltaria à política em 2010, como senador da República pelo PMDB, e faleceu em exercício do mandato, em 2 de julho de 2011.
Itamar cancelou o jantar do dia seguinte, mas não parece ter esquecido Lilian Ramos tão rápido. Paulo Araújo afirma que, passado o burburinho, recebeu uma ligação de Getúlio Gurgel, fotógrafo oficial da Presidência da República. O emissário do chefe solicitou uma cópia da fatídica foto e foi solenemente atendido. “Fiz grande, né? 30 por 40, dei uma dedicatória e mandei pra Brasília”, diz Araújo.
Paradeiros, 30 anos depois
Valdemar Costa Neto se livrou da pecha da calcinha e seguiu na Câmara dos Deputados até 2007. Voltou ao mandato em 2011 e assim permaneceria até 2013, renunciando ao cargo na esteira da Ação Penal (AP) 470, nome jurídico do escândalo do Mensalão. No mesmo dia da renúncia, foi preso para o cumprimento da pena pela condenação no esquema. De volta à liberdade após cumprir parte da sentença e ser indultado em 2016, manteve-se como homem-forte do PL e, hoje, é presidente nacional da sigla que abriga o ex-presidente Jair Bolsonaro. Na última quinta-feira, 8, foi preso por posse ilegal de arma em meio ao cumprimento de uma busca e apreensão na operação Tempus Veritatis, que apura a participação de Bolsonaro e alguns aliados na articulação de um golpe de Estado.
Paulo Araújo permaneceu no Dia até 2015, chegando à coordenadoria de fotografia. Hoje, é professor de cursos de desenvolvimento audiovisual da Firjan/Senai do Rio de Janeiro. Marcelo Carnaval esteve no Globo por mais 25 anos, até 2019, e chegou a ser editor-adjunto da publicação. Aposentado, mora na Europa em um motorhome.
Uma questão de ética
O “carnaval das calcinhas”, como foi tratado na imprensa, não deixa de ser uma questão de ética jornalística. É mais um dos casos em que se pode aplicar um velho e aberto dilema nos estudos em comunicação: qual é o limite do interesse público? Em que medida ele se sobrepõe à privacidade? São outras formulações para o problema concreto: foi correto expor Lilian Ramos sem roupa íntima?
“O que é notícia é para ser publicado”, responde Marcelo Carnaval, para quem o registro simplesmente enquadra um momento de diversão. “Foi menos vexatório do que a mulher do chefe do crime de Manaus entrar no Ministério da Justiça”, diz Carnaval, aludindo à série de reportagens exclusivas do Estadão sobre o trânsito da “dama do tráfico” em Brasília.
Paulo Araújo reitera o valor-notícia. “Sou a favor da verdade, da notícia. Estava sem calcinha? Estava. Estava ao lado do presidente Itamar Franco? Estava. Se eu não publicasse a foto, ninguém jamais saberia que, um dia, uma sósia da Fafá de Belém chamada Lilian Ramos teve a ousadia de estar do lado de um presidente da República sem calcinha, na festa da carne, o carnaval”.
Ninguém jamais saberia, mas somou-se a ousadia da modelo à sagacidade dos fotógrafos, que ganharam na loteria do escasso rolo de filme. Bastaram alguns cliques para devassar a República.
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