09 fevereiro, 2024

O Samba Ítalo-Paulistano de Miriam Batucada - Daniel Costa.


Redaçãojornalggn@gmail.com

por Daniel Costa

Quando o assunto é samba, e especificamente o samba Paulista, não é incomum surgir na memória coletiva nomes como Adoniran Barbosa, Paulo Vanzolini e o conjunto Demônios da Garoa. São lembrados também personagens como Eduardo Gudin e Germano Mathias, para ficar entre os mais conhecidos. Porém, o samba de São Paulo não foi construído apenas por essas personagens; acredito que por entre outros fatores, tais nomes possuírem maior penetração no meio artístico da cidade, acabaram escolhidos como as personalidades que representavam no imaginário coletivo o samba Paulistano.

É importante destacar que ao levantar tal questão não pretendo desmerecer a produção e o talento dessas personagens, afinal o próprio Germano Mathias teve sua formação de sambista batucando com os engraxates e jogando tiririca nas rodas da Sé e República, além de ter frequentado a fundante Lavapés na região do Glicério. Adoniran por sua vez, apesar de artista de rádio reconhecido já nos anos quarenta e cinquenta era facilmente encontrado nas rodas boêmias do Bixiga e da região central da cidade. Assim, ao colocar tais personagens como os principais nomes do samba paulistano, mesmo que involuntariamente, deixamos a margem boa parte da história em torno da construção do samba de São Paulo.

Desse modo, ignorar essa história significa relegar ao esquecimento figuras ímpares como aqueles que ficaram conhecidos como os cardeais do samba Paulistano: Carlos Alberto Alves Caetano, o Seu Carlão do Peruche (Unidos do Peruche); Inocêncio Tobias (Camisa Verde e Branco); Sebastião Eduardo Amaral, o Pé Rachado (Vai-Vai); Alberto Alves da Silva, o Seu Nenê (Nenê da Vila Matilde); Deolinda Madre, a Madrinha Eunice (Lavapés); Benedito Nascimento, o Xangô de Vila Maria e tantos outros nomes.

Caso fosse colocar nossa personagem em uma prateleira específica, poderia dizer que seria uma legítima representante do samba Ítalo-Paulistano, porém Miriam Batucada foi muito mais que isso. Iniciando a carreira no final dos anos sessenta, soube fazer como poucos a junção do samba, do choro, do rock, da malícia e da tropicália sem perder o original sotaque vindo da Moóca. Entretanto, apesar de toda versatilidade que apresentava como outros artistas de sua geração acabou sendo colocada na gaveta dos artistas malditos.

Miriam Ângela Lavecchia, conhecida como Miriam Batucada era neta de italianos. Nascida em 28 de dezembro de 1946, no bairro da Moóca seria registrada apenas no primeiro dia de 1947, ganhando “um ano” como algumas famílias costumavam fazer naquele período. Com apenas seis anos tocava harmônica, uma Scandalli de 120 baixos, revelando desde pequena a aptidão musical. Ainda com essa idade, a pequena Miriam também chamava a atenção de vizinhos e familiares por saber a letra e melodia de músicas dos mais variados gêneros.

Como revelou em entrevista, ainda quando criança, conheceu uma menina mais velha que tinha o apelido de “Chacareira”, foi ela quem lhe ensinou a batucar com as mãos durante um “curso intensivo” que durou três meses. Por volta dos quinze anos começou a tocar violão com um ritmo fantástico. Além disso, desdobrando os ensinamentos que tivera com Chacareira vivia fazendo percussão, no tempo e no ritmo certo, com batidas nos sofás, paredes e móveis de sua casa.

Miriam residiu até os vinte anos na Rua João Antônio de Oliveira; fez o jardim de infância na Escola Santa Terezinha, na Rua Javari; o antigo grupo escolar na atual E.E. Oswaldo Cruz e o curso técnico na Brasilux. Depois disso fez um curso de digitadora na IBM e foi trabalhar na Alpargatas, localizada onde hoje funciona a Universidade Anhembi Morumbi e na Arno, onde segundo a própria Miriam fora despedida por fazer batucada nos teclados.

Assim, pode-se dizer que Miriam teve sua identidade artística construída na Moóca, onde desde a infância assimilou e reproduziu o que é conhecido como dialeto Ítalo-Paulistano. Foi também no bairro que efetivamente iniciou sua carreira, cantando em festinhas de amigos e nos concursos de calouros tão comuns à época como o que ocorria no Clube de Funcionários da Cia. União, que ficava do lado da fábrica de meias Ibram, na Rua João Antônio de Oliveira, quase esquina da Rua da Moóca.

No começo, Miriam despontava com um samba cadenciado, com forte inclinação melódica remetendo aos clássicos de Noel Rosa, Wilson Batista e similares. Com o resgate do que aprendera na infância com a Chacareira e a divisão de cantoras como Ademilde Fonseca que ouvia no rádio Miriam passaria a adotar um ritmo frenético no compasso de qualquer samba. Em 1967, recebeu convite para participar do programa de Blota Júnior, a apresentação durou duas horas e maravilhou todo o público e o apresentador. De quebra, Miriam tocou todos os instrumentos que se encontravam no palco: pianobateriaharmônicaviolãocuíca, além de batucar na mesa do apresentador e mostrar também a sua batucada com as mãos.

No dia seguinte já era representada pelo famoso empresário Marcos Lázaro, seria contratada pela TV Record: passando a participar do Programa da Sônia Ribeiro, em seguida ganharia um programa com Ronnie Von nas tardes de sábado. Foi durante sua apresentação no programa da apresentadora Cidinha Campos que ganhou o apelido de Miriam da Batucada. Como o “da” na época não estava na moda, o extraiu e ficou só com o codinome de Miriam Batucada.

Sua estreia nos estúdios de gravação ocorre em 1967, quando grava pelo selo Artistas Unidos da gravadora pernambucana Rozenblit o compacto com as faixas “Batucando nas Mãos” do então jovem compositor Renato Teixeira e o sincopado “Plác-tic-plác-plác” de Waldemar Camargo e Peteleco, que na realidade era o cantor e compositor Adoniran Barbosa.

De acordo com o jornalista Ayrton Mugnani Jr, biógrafo de Adoniran: “Peteleco, era o mais famoso dos cachorros de estimação do artista, seu grande companheiro de passeios por São Paulo e viagens à praia de Santos. Adoniran usou o nome de seu amigo canino para assinar músicas em parceria com compositores pertencentes a sociedades rivais, como Irvando Luiz (“É da Banda de Lá”) e Gianfrancesco Guarnieri (“Nóis Não Usa as Bleque Tais”). Num artifício muito usado por compositores em todo o mundo, Adoniran creditava essas músicas a uma pessoa próxima- no caso, sua esposa Mathilde-, que adotava o pseudônimo de Peteleco”.

O compacto produzido por Roberto Corte Real não obteve grande repercussão. Mesmo com a composição de Waldemar Camargo e Adoniran aparecer novamente na coletânea Seleção de Sucessos, ainda não havia chegado à hora de Miriam gravar um disco só seu.

Em 1968 quem aposta na jovem cantora Paulistana é a gravadora Odeon que a convida para gravar um compacto duplo, destaque para as faixas “Linguajar do morro” “Puro amor”. Desde o primeiro compacto Miriam apresentava sua famosa batucada nas mãos nas gravações. No mesmo período passou a ser muito requisitada para espetáculos e chegou a até fazer apresentações no exterior. De acordo com alguns críticos musicais, apesar de seu samba ser relativamente tradicional, Miriam era pessoalmente muito criativa e aberta.

Essa abertura e criatividade, resultado da vocação antropofágica da cultura Paulistana possibilitou a Miriam participar ao lado de Raul Seixas, Sérgio Sampaio e Edy Star do seminal Sociedade da Grã-Ordem Kavernista apresenta: Sessão das 10. O álbum lançado em 1971 pela gravadora CBS surge como uma espécie de desdobramento tardio do movimento tropicalista, e como uma tentativa do produtor Raul Seixas de criar uma linha de álbuns voltado para a juventude na CBS, que na época seguia encarando como música jovem os rocks adolescentes da já ultrapassada jovem guarda.

Basta lembrar que nesse período Erasmo Carlos em parceria com o maestro Rogério Duprat lança pela Philips o clássico Carlos… Erasmo, álbum que traz influências da tropicália, do samba rock e da pilantragem; por sua vez Roberto Carlos começa a levar para a CBS a influência do soul e a ex-ternurinha Wanderléa começa sua caminhada para se desvencilhar-se da imagem de moça frágil, chegando a flertar com o rock apresentado por Gal Costa em Fa Tal.

O disco coletivo produzido por Raul Seixas e gravado entre junho e julho de 1971 contou com arranjos de Ian Guest e a participação de músicos do conjunto do organista Lafayette e do famoso Renato e Seus Blue Caps que pertenciam ao cast da gravadora. No disco coletivo Miriam interpreta as faixas “Chorinho inconsequente”, de Sérgio Sampaio e Erivaldo Santos e o gaiato “Soul Tabaroa”, da iniciante dupla Antônio Carlos e Jocafi. De acordo com a socióloga Bruna Bartholomeu em trabalho sobre o disco produzido por Raul, a obra seria “fruto das geniais ideias destes quatro subversivos jovens artistas, cantores e compositores, que entre a curtição e o experimentalismo, fizeram um disco que até hoje é objeto de curiosidade do público geral e análise de muitos especialistas em música”.

Como é de amplo conhecimento, o disco fora produzido por Raul sem autorização da gravadora. Aproveitando a viagem do todo poderoso Evandro Ribeiro o futuro maluco beleza tentou fazer sua revolução, porém o disco de guerrilha foi retirado das lojas assim que Evandro retornou ao país. Ao contrário de Raul que fora demitido partindo com malas e utensílios para a Philips, o barulho gerado pelo manifesto em  forma de disco não fecharia as portas da CBS para Miriam que no ano seguinte gravaria mais um compacto, dessa vez com o comportado samba intitulado “Gente”. Composição do também insubmisso bamba imperiano Aluísio Machado.

Após a passagem pela CBS, nossa personagem desembarca na Chantecler, onde em 1973 lançaria um compacto com a autoral “Decisão”, e o acelerado “Polichinelo”, regravação do choro composto por Gadé. A repercussão do compacto e o efervescente mercado do disco traria boas surpresas para Miriam.

O ano de 1974 enfim reservaria para a cantora a chance de gravar um LP individual. Lançado pela Chantecler, o álbum Amanhã ninguém sabe, coloca a intérprete ao lado de cantoras como Maria Alcina (que embalada pelo sucesso da canção de Jorge Ben, “Fio Maravilha”, lançaria pela Chantecler álbum homônimo em 1973 e pela Continental em 1974) e Célia (que por meio da Continental lançaria uma trilogia clássica entre 1970 e 1975).

Miriam apresenta no álbum toda sua versatilidade, interpretando desde o clássico de Alvaiade e Zé Maria, “O Que Vier Eu Traço”, lançado por Ademilde Fonseca (Choros Famosos, Philips, 1962); “Meu Romance”, de J. Cascata; passando pelo sucesso do colega Grã-Kavernista, Sérgio Sampaio com “Eu quero é botar meu bloco na rua” e Chico Buarque com a canção que dá título ao disco.

Na contracapa do álbum em um texto destinado aos ouvintes a cantora entre a alegria e surpresa escreve: Confesso que o achei um pouco louco quando me propôs gravação deste tão esperado LP, pedindo-me que ficasse totalmente a vontade, livre: que fizesse o que sentisse, pois queria toda a minha personalidade no disco; a minha batucada na mão, no violão, o meu lado fossa e a minha face alegre, consciente de que sou a única em tudo que faço”.

De acordo com o jornalista Pedro Alexandre Sanches, o samba feito por Miriam, era um “samba matreiro, um elo perdido na tradição iniciada por Ademilde Fonseca, arranhada por Elza Soares e prestes a ser entregue a Baby Consuelo”. Já para o também jornalista Alexandre Petillo, a cantora seria a “versão feminina de Germano Mathias e Moreira da Silva”.

Após o disco lançado em 1974, Miriam lançaria em 1975 um compacto intitulado Sotaque Paulista, onde reafirma sua identidade Paulistana. Em 1979 pela gravadora RGE aparece em novo compacto ao lado do apresentador Chacrinha,  lançando marchinhas para o carnaval daquele ano. No lado A, o velho guerreiro interpretava a marchinha de duplo sentido “Ajoelhou” (Chacrinha e Elzo Augusto), no lado B Miriam canta a “Marcha do João” (João Roberto Kelly, Elzo Augusto e Miriam Batucada). Já para o carnaval de 1980, agora pela CBS, lança a autoral, “Batucada, Cachaça e Futebol”. Nesse momento a vanguardista Miriam encontra guarida nas marchinhas carnavalescas que definhavam diante da ascensão dos sambas de enredo deixando para trás os anos de glórias dos grandes concursos das décadas de quarenta e cinquenta.

Miriam ainda lançaria em 1991 pela Independente Ric Studio o disco “Alma da festa”, com destaque para “Samba nipônico” de Celso Viafora e “O cachorro late” canção de Waldir da Fonseca.

Entre meados da década de oitenta e início dos anos noventa Miriam passaria a ser atração frequente em casas noturnas, segundo Petillo, de “caráter duvidoso”, em tempos de enormes dificuldades os velhos inferninhos tornavam-se a guarida de muitos músicos e intérpretes.

A cantora e compositora seria vitimada por um infarto fulminante, vindo a falecer em julho de 1994. Passados trinta anos de sua morte o dialeto Italo-Paulistano cantado por Miriam Resiste na memória daqueles que batucam pela Moóca e Bixiga. Ainda de acordo com Alexandre Petillo, a morte de Miriam,“foi quando o show acabou, melancolicamente. Como o samba Paulistano, como suas músicas, seus shows. Como uma lenta batucada”.

Para encerrar transcrevo um poema de Miriam presente na contracapa do disco lançado pela Chantecler e que resume a trajetória dessa Paulistana que encantou o Brasil com sua batucada.

Eu penso
Eu falo
Eu sinto
Eu quero
Eu peço
Eu brigo
Eu tenho
Eu dou
Eu fico esperando
Acordando com medo…
Eu saio de casa,
Eu entro nos bares.
Eu fecho todas as portas
Do casarão antigo, ao teto alto.
Grandes quartos, que existem dentro de mim.
Até o dia em que eu encontre e consiga
alugar todo esse espaço para alguém morar…

Daniel Costa é historiador, pesquisador, compositor e integrante do G.R.R.C Kolombolo Diá Piratininga

Para saber mais:

MELO, Bruna Bartholomeu de. Eu não quero mesmo nada, eu não tenho nada a ver com isso”: Um estudo sobre o álbum fonográfico “Sociedade da Grã-ordem Kavernista apresenta Sessão das 10. Disponível em: https://repositorio.unifesp.br/11600/66894
SCABIN, R. C.; MAGGIO, G. Houve um dialeto ítalo-paulistano?. Revista de Italianística, [S. l.], n. 40, p. 5-18, 2020. DOI: 10.11606/issn.2238-8281.i40p5-18. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/italianistica/article/view/174408.