Publicado por Elienai Cabral Jr.
As vozes ressentidas não lembravam a imponência e sublimidade de
outras reuniões do Conselho. A certeza de sempre não combinava com o tom
tíbio dos sacerdotes e escribas que agora se revezavam no empenho de
salvar os preceitos da fé. Impossível manter em pé uma crença quando se
esparrama no chão duro de uma tragédia.
As Legiões Romanas impingiam dor e vergonha ao povo. Cada dia se
contavam menos homens, dizimados em combates desiguais. E mais mulheres,
desfilando vergonha e dor pelas ruas, tantas delas estupradas por
soldados invasores, em sinal de posse e dominação.
A tradição não abria mão de que apenas crianças nascidas de um pai
judeu podiam ser consideradas legítimas herdeiras de Abraão. O que já
fora um preceito cheio de viço e orgulho tornou-se uma vexaminosa marca
sobre meninas e meninos, nascidos da violência. A lei que se arrogava
divina e afirmadora de uma nação, agora repetia a violência e confirmava
bastardos.
Deus, assim, tornou-se um diabo. E a vida piedosa, um inferno.
Já eram uma multidão os sombrios despertencidos.
Um jovem sacerdote, amigo próximo de Elazar, rabino que ensinava no
deserto, rompeu a vergonha e gaguejou o que todos precisavam que fosse
proposto, mas sem a coragem de dizer sequer as primeiras palavras da
outrora infâmia. Não se deveria mais impor a esmagadora carga de
considerar bastardos os filhos de mães judias sem pais judeus, com o
risco de sequestrar o futuro dos filhos de Abraão. Alguém confirmou com a
voz embargada, não bastasse serem estupradas as nossas mulheres, nossos
filhos são abandonados por aqueles que lhes deveriam acolher.
As vozes engasgadas não disfarçavam a palidez do rosto e o olhar
disperso. Ninguém nunca soube ao certo quem pronunciou a frágil
sentença, que uma vez dita, contou com o silencioso assento de todos,
também do Sumo Sacerdote. Se a mãe judia se ressente de um pai judeu
para o filho que cresce em seu ventre, Deus, o misericordioso, é o pai
que ao filho falta.[1]
E a fraqueza da regra pode ter sido a fresta para a vida ressurgir.
A notícia da reunião foi ouvida como uma boa nova, um alívio, uma
esperança. Um sopro de inesperada dignidade correu vielas e arejou almas
angustiadas.
Maria nunca se livrou do pesadelo. O cheiro azedo do homem que
invadiu seu corpo e violou sua alma ainda era uma lembrança que lhe
assaltava inclemente. Mais ainda agora, que um fruto amargo era gestado
em seu ventre. Chegou a pensar que nem fosse verdade. De tanto que
queria que tudo fosse diferente. Desde então evitou o noivo, José. Sua
bondosa companhia e a insistência em fazer planos para o futuro eram uma
tortura para quem já se sentia assim indigna.
Maria, tão calada, preocupava a todos. Era vista pelos cantos.
Estaria infeliz pelo casamento? Não, sonhava acordada para acalmar os
pensamentos Divagava na doce fantasia de que o bebê não era filho do
asqueroso inimigo. Não, no seu sonho, tudo era outramente belo. Porque
bebês eram feitos divinos e o seu chegara ao ventre soprado por Deus,
consolava-se. Chegou a ver um anjo, como aquele que visitou Ló e o levou
embora do caos. No seu desejo encantado, quase dormindo, mas o bastante
acordada para guiar a imaginação, o ser luminoso lhe dizia que não
estranhasse a gravidez. Deus era o pai da criança. E dormia para não
acordar amarguras.
A notícia entrou pela porta e despertou Maria, que cochilava suas
tristezas. Sua prima, Isabel, aos berros, ora segurava sua barriga, que
ainda disfarçava o feto, ora agarrava seu rosto e, atrapalhada,
misturava as falas com gritos quase insanos. Salvas. O Salvador. Ele é o
Filho de Deus! Jeová é pai. E antes que Maria deixasse claro que nada
entendia, Isabel contou as novidades do Sinédrio. Maria se agarrou à
Isabel e chorou. Até dormir novamente.
Ao acordar, as lembranças do dia anterior estavam incertas. Havia o
rosto excitado de Isabel, a história da nova doutrina e a doce e
inconfessa fantasia de um filho digno em vez do bastardo.
Não precisou de um delírio para imaginar que sua tragédia bem podia
ser o sinal de um grande evento. Uma salvação. E quando pensou assim,
sentou-se na cama e o olhar se perdeu pelo quarto que já estava
iluminado pela manhã. O coração bateu forte e descompassado. É isso.
Tanta tristeza podia ser como a dor de parto que em breve sentiria, a
gestação de um santo, o nascimento de um homem distinto. Um profeta,
talvez. Um guerreiro. Quem sabe?
Afinal, se a salvação de Deus tem que virar do avesso o mundo e sua
injustiça, nenhum começo seria mais apropriado que a partir do mais
maldito e sofrido dos mortais. Passou pelos pensamentos o gileadita
Jefté, filho de uma prostituta, que depois de expulso e envergonhado,
foi trazido para liderar sua gente à vitória sobre os opressores.
Lembrou do Profeta Isaías e o prometido que nasceria inglório. Com meio
sorriso, até sussurrou as Escrituras, “uma muda mirrada, uma planta
ressecada.” Impossível não associar. Desprezado por todos, sem beleza. E
o que era profunda angústia explodiu feito revelação. Cheio de dores,
seria a cura para o mais terrível sofrimento; banhado de vergonha, o fim
da culpa; açoitado por doenças, o remédio para as enfermidades. Chorou
de novo, mas desta vez, era a esperança que molhava seu rosto. Como as
águas correntes do rio dissolvem as manchas das roupas.
Alguém lhe avisou que seu noivo a aguardava na entrada da casa.
Estranhou a hora do dia para a visita. Teve medo e por um momento
desistiu de tudo o que vinha pensando. Suspirou triste e lacrimejou. A
sombra da tragédia acenava mais uma vez para a sua realidade. Arrastou
os passos até a porta e encontrou José, que a olhava como quem já
tivesse sido avisado da desgraça e de mais alguma coisa.
O silêncio que se seguiu pareceu um recuo do tempo, um intervalo nas
horas. O mundo parou. Estava um diante do outro e tudo o mais inexistia.
Nenhum dos dois conseguia dizer nada. Os olhares se curvaram, para se
erguerem em seguida e se reencontrarem reticentes.
Os olhos conversam para salvar-nos do cansaço das palavras.
Tanto a dizer e o silêncio engoliu as frases ensaiadas do homem e
desdenhou o pedido inaudito de clemência da moça. José emitiu alguns
sons, tentativas indecifráveis de iniciar qualquer palavra e,
despedindo-se dos discursos, se aproximou de Maria, bem quando ela
tentava inútil desengasgar. E a abraçou com tanta força que entre os
corpos não restou lugar para qualquer conversa.
[1] BONDER, Nilton. A alma imoral. Editora Rocco. São Paulo,
2007. O Rabino Bonder, entre tantas histórias que conta para ilustrar
como a alma transgride, ou trai a tradição para salvar a vida, sugere
que Jesus bem poderia ter sido fruto do estupro de Maria por um soldado
romano, prática comum à época. Conta da tradição revista pelas
autoridades para determinar a ascendência judaica, em que apenas filhos
de pais judeus poderiam ser considerados judeus. Passou-se a considerar
bastante que a criança tivesse a mãe judia para que fosse considerada
judia. Bonder completa dizendo que se a criança não tinha um pai judeu,
Deus seria seu pai.
Tomei aqui a ideia do Rabino para construir uma ficção, mas que seria uma linda verdade, se verdade fosse.