Tem gente dizendo que cartunistas foram longe demais, o que equivale a afirmar que mereceram. É o mesmo raciocínio de quem diz que mulher estuprada estava pedindo
Vamos combinar que não existe nada mais
ofensivo do que um tiro na cabeça. Não posso imaginar uma blasfêmia
maior do que espalhar os miolos de alguém com um AK-47. Porque tem gente
dizendo que os cartunistas do Charlie Hebdo foram longe demais, o que
equivale dizer que mereceram o que lhes aconteceu. É o mesmo raciocínio
de quem diz que mulher estuprada geralmente estava pedindo.
"Blasfêmia"
quer dizer uma afronta ao sagrado. Assim, a verdadeira discussão não é
sobre o que as pessoas consideram blasfêmia, mas sobre o que consideram
sagrado. A descrença em qualquer divindade é uma blasfêmia perene - ou,
visto de outra forma, quem não crê em nenhum deus não pode, por
definição, ser um blasfemo.
Muitas vezes, o que se faz em
nome de uma crença ou de uma divindade é que é blasfêmia: uma ofensa a
quem acha que sagrado deve ser a vida humana, o direito de pensar
livremente e o direito de descrer. Não se está falando só do islamismo
radical. Já houve tempo em que não acreditar no deus da Igreja romana
era razão suficiente para ser queimado vivo. Levava mais tempo do que um
tiro de AK-47.
Mudando de assunto, mas não muito. A reação
do George W. Bush aos ataques ao World Trade Center foi da catatonia,
quando recebeu a notícia, à hiperatividade impensada, que resultou na
transformação da base americana de Guantánamo em campo de concentração
para "terroristas" que, na sua maioria, não tinham nada a ver com o
atentado e, mais tarde, na invasão do Iraque para pegar o Saddam, que
também não tinha nada a ver com o 11/9, e as suas armas de destruição em
massa, que não existiam. Mas faça-se justiça: num dos seus primeiros
pronunciamentos depois dos ataques, quando já se sabia quem eram os
responsáveis, Bush fez questão de alertar contra perseguições aos
muçulmanos no país, que não tinham culpa da ação radical de uma minoria.
Na
França pós-7/1, com sua imensa população muçulmana, vítima do
ressentimento de boa parte da maioria francesa e da crescente reação a
imigrantes em toda a Europa, vai ser difícil seguir um conselho como o
do Bush. A direita inchou do 7/1 para cá, na França. Se sua pregação
racista vai prevalecer contra a tradição libertária da terra dos
direitos humanos, é o que se verá nas próximas eleições. Os AK-47 podem
ter matado muito mais do que 17 pessoas.
Caixão de Tignous recebeu assinaturas e ilustrações