01 fevereiro, 2013

Mário de Andrade - Fundacao Perseu Abramo

O mundo de Mário de Andrade
 
Talvez não exista algo similar no Brasil. O arquivo de Mário de Andrade no Instituto de Estudos Brasileiros, na Universidade de São Paulo, tem os manuscritos, as fotografias, as matérias de periódicos, os recortes, as correspondências, os quadros do escritor. Há também manuscritos de outros escritores. “Mário dialogava com os companheiros modernistas que mandavam a ele manuscritos de obras ainda a publicar”, conta Telê Ancona Lopez
 
 
Telê Ancona Lopez, livre-docência em Literatura Brasileira na FFLCH-USP, professora titular da USP, foi curadora do Arquivo Mário de Andrade no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo. Coordenou o projeto temático Fapesp, Estudo do processo de criação de Mário de Andrade nos manuscritos de seu arquivo, em sua correspondência, em sua marginália e em suas leituras (2006-2011). Nesta entrevista, uma das principais responsáveis pela manutenção do acervo de Mário de Andrade nos fala sobre o seu trabalho com a obra do escritor.

Conte como você foi parar no Fundo Mário de Andrade. Hoje, entre suas realizações contam-se inúmeros volumes publicados, teses defendidas sob sua orientação, equipes que se formaram sob sua coordenação, projetos para os quais você arranjou financiamento.
O trabalho com a obra de Mário de Andrade começa num curso de especialização dado por Antonio Candido, em 1962. Era a análise do poema “Louvação da tarde”, que resultaria naquele belíssimo ensaio "O poeta itinerante". Ficamos um semestre trabalhando o poema: em tudo, estrofação, verso e metrificação, sonoridade, imagens e símbolos... Eram as aulas das sextas-feiras, de Antonio Candido (
Leia depoimento de Antonio Candido sobre a trajetória do acervo).

Paulo Emílio Salles Gomes e Lygia Fagundes Teles assistiam ao curso, você se lembra?
Acho que sim. Nesse curso Antonio Candido contou pra gente que o acervo do Mário estava intocado na casa da Rua Lopes Chaves, depois tombada, cuidado pela família. E de fato a família cuidou, generosamente.

Com a ajuda do secretário, José Bento?
José Bento não estava mais lá, só aparecia eventualmente. Quem cuidava, quem passava o líquido de dedetizar os livros, era o cunhado, Eduardo Ribeiro dos Santos Camargo, casado com Lurdes, irmã de Mário. Ele, já velhinho, morreu em 1966. Antonio Candido nos contou que o acervo estava lá e que havia a marginália (anotações autógrafas na margem dos livros), que ele conhecia. Era talvez a marginália mais importante, mais completa do Brasil. E eu, muito afoita, levantei a mão e disse: “Professor, vamos recolher isso nas férias de janeiro”.

E não acabou até hoje... Sei que o estudo da marginália você completou, li seu trabalho.
Foi feito juntamente com Maria Helena Grembecki, que era minha colega nesse curso, Nites Teresinha Feres, que tinha vindo de Assis, e Antonio Candido, orientador das três.

Mas no levantamento da marginália de Mário eram só vocês três?
Nós três. A Vera Chalmers trabalhou numas férias, quando estávamos prestes a nos mudar de lá: conseguimos uma moedinha parca e então ela trabalhou dois ou três meses conosco.

A pesquisa da marginália foi financiada pela Fapesp, que acabara de ser criada?
Foi. Aliás, foi da Fapesp, porque eu tirei da nossa verba.

Parece que foi a primeira vez  que saiu verba da Fapesp para literatura. Antes, só saía para ciência. Antonio Candido propôs vocês três como bolsistas...
A primeira verba, de fato, foi de José Aderaldo Castello, professor de literatura brasileira e diretor do IEB por catorze anos, que saiu pelo Brasil afora recolhendo os textos das academias coloniais. Inventou uma máquina fabulosa de microfilmar, de fotografar, que depois nos emprestou. Então, eu fiz a proposta, montamos essa equipe, a princípio tinha uma menina, Ivone Aguilera, que ficou pouco. Ficamos as três e o Antonio Candido pediu verba à Fapesp. Em 1964, estava tudo encaminhado, mas sobreveio o golpe e não saiu nada. Ficamos trabalhando por nossa conta. Dávamos aula para sobreviver e íamos para lá duas, três vezes por semana. Depois íamos todos os dias. E a família nos recebia: nossa, nós ficamos gente da casa.

Quantos anos demorou esse trabalho?
Saímos de lá em agosto de 1968. Portanto, ficamos de 1963 a 1968. Me lembro do Antonio Candido chegando de boina, muito chique. Eu levei minha máquina de escrever Olivetti portátil, usávamos também a Manuela (máquina de escrever de Mário de Andrade) e a máquina de seu Eduardo.
Na virada de 1967 para 1968, José Aderaldo Castello nos emprestou sua máquina de filmar. Uma coisa fantástica, um tripé, em cima de um quadrado, com quatro lâmpadas e no centro uma câmera Leica. E a câmera usava filme de 12 ou de 24 poses, que era preciso recortar com tesourinha para encaixar. Ele a carregou pelo Brasil inteiro, fotografando os arquivos das academias coloniais, que foram compilados em dezessete volumes. Ficávamos fechados no escuro, microfilmando. Microfilmamos vários livros anotados, que estão aí até agora.
 
http://www.teoriaedebate.org.br/materias/cultura/o-mundo-de-mario-de-andrade
 
 

A trajetória do acervo de Mário

Mário tinha manifestado informalmente à família o desejo de distribuir seu acervo por várias instituições, mas a família não deu andamento e ficou tudo na casa onde ele morava, à Rua Lopes Chaves, onde a irmã foi morar, conta Antonio Candido a Walnice Nogueira Galvão
Antonio Candido conta como se formou no IEB-USP o centro de estudos sobre Mário
Antonio Candido conta como se formou no IEB-USP o grande centro de estudos em torno de Mário
Foto: Letícia Moreira/FolhaPress
 
Dei um curso de análise do poema “Louvação da tarde”, de Mário de Andrade, em 1962, que acabou tendo muitas consequências. Desse seminário saiu a pesquisa em casa de Mário de Andrade, a cargo de Nites Teresinha Feres, Maria Helena Grembecki e Telê Ancona Lopez (leia O mundo de Mário de Andrade). Eu propus: “Vamos examinar a marginália do Mário de Andrade”. Então arranjei uma verba com a Fapesp, que não dava verba para literatura, só para ciência; mas mostrei a eles que pode haver pesquisa em literatura. A primeira foi para essas meninas e para Pérola de Carvalho analisar Machado de Assis. É preciso dizer que como minha disciplina de Teoria Literária e Literatura Comparada era nova, sem tradição nem hábitos adquiridos, foi fácil introduzir cursos sobre autores recentes, contrariando a norma. Encaminhei as três moças que mencionei para o estudo da obra de Mário e Vera Chalmers para a de Oswald de Andrade.

Mário tinha manifestado informalmente à família o desejo de distribuir seu acervo por várias instituições: Biblioteca Municipal, que hoje leva seu nome, Biblioteca de Araraquara, Pinacoteca, Cúria – o que seria uma pena. A família não deu andamento e ficou tudo na casa onde ele morava, à Rua Lopes Chaves, onde a irmã foi morar. Um dia o irmão dele, Carlos de Morais Andrade, me chamou e disse: “Nós estamos numa situação um pouco complicada, porque precisamos dar um destino a tudo isto. Além disso minha irmã está em situação difícil porque o marido morreu e ela precisa de dinheiro. Nós não queremos vender, porque o Mário não queria vender nada, mas queríamos ceder para alguma instituição que desse uma compensação pequena a ela. O que você acha?” Estavam reunidos Carlos de Morais Andrade, o sobrinho Carlos Augusto de Andrade Camargo e Airton Canjani, casado com a irmã deste. Eu disse: “Podemos transformar isto aqui numa Casa de Mário de Andrade ou incorporar à Universidade de São Paulo. Se vocês quiserem transformar isto numa Casa de Mário de Andrade a situação é boa porque, embora eu seja oposição, o atual governador do estado, que é o Roberto de Abreu Sodré, foi meu companheiro de luta política contra o Estado Novo. O secretário do governo é amigo meu, o Arrobas Martins, colega de turma na Faculdade de Direito. Eu sei que eles estão loucos para fazer uma Casa de Mário de Andrade”. Aí eles conversaram, pensaram um pouco, e com grande bom senso disseram: “Queremos incorporar à universidade”.

Fui falar com José Aderaldo Castello, que pegou fogo, encampou a ideia e promoveu tudo, depois de obter o consentimento da reitoria. Morais Andrade me disse: “Não quero um tostão para mim, mas quero uma compensação para minha irmã” – fixando duzentos não sei o que, mil ou milhões, porque esqueci qual era a moeda. A reitoria achou tão pouco que deu quinhentos, quantia quase simbólica em face da qualidade e quantidade do acervo: uma coleção de quadros que era um museu, esculturas, quatrocentas gravuras, inclusive algumas de Albrecht Dürer, coleção de partituras, coleção de arte popular, coleção de imagens, 15 mil volumes na biblioteca. E mais toda a papelada dele e a correspondência. Uma coisa monumental. Foi a partir daí que se formou no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB-USP) o grande centro de estudos em torno de Mário de Andrade.