19 setembro, 2024

Dicas Culturais da Revista Piauí

 

João Barreto Falcão Neto é um diretor, roteirista e compositor brasileiro. Foi casado com a escritora Adriana Falcão, com quem teve duas filhas: Clarice Falcão e Maria Isabel Falcão. Wikipédia
Nascimento: 20 de setembro de 1958, Recife, Pernambuco

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A escritora Fernanda Young era uma figura midiática magnética. Falava sobre tudo, sempre disposta a expor fraquezas e imperfeições que gente famosa omite sobre si. No documentário Fernanda Young – Foge-me ao controle, a diretora Susanna Lira escolhe como forma narrativa um mergulho na cabeça profusa da escritora. O filme se constrói num tom ensaístico-poético, costurando áudios e vídeos de entrevistas, arquivos pessoais, trechos de suas obras literárias e audiovisuais para compor a personagem a partir dela mesma.

A concepção ensaística nem sempre funciona. Ainda que a proposta do documentário seja uma narrativa fragmentada, sem controle, como sugere o título, um filme-ensaio demanda uma construção de ideias muito bem amarradas. E por vezes o roteiro é solto demais, sem conectar com rigor as ideias que quer transmitir. Ainda assim, Young é uma figura tão interessante que qualquer apanhado de sua vida inevitavelmente tem apelo. Como quando Estela May, filha de Young, narra a união improvável da mãe punk com o pai yuppie (o roteirista e publicitário Alexandre Machado) que resultou num casamento duradouro e numa parceria profissional profícua. Há outras pérolas engraçadíssimas, como Young cantando e dançando ao som de um disco de Roberta Miranda. Ou os vídeo-ensaios produzidos pela própria escritora em vida. 

O maior atrativo do filme sobre Fernanda Young é Fernanda Young falando de Fernanda Young. É como se sentar numa mesa de bar e ouvir uma pessoa interessante falando de sua vida. Sobre como o abandono paterno moldou sua personalidade, ela diz: “Não quero que meu pai morra achando que fui uma babaca, quando na verdade fui uma doidona”. Da experiência com a maternidade: “A maternidade é uma cisão. Você pode estar numa suruba na Grécia e de repente: cadê meus filhos?” Ou o impacto que o livro Christiane F. teve em sua vida quando ela entrou na adolescência, experiência que relatou no seu livro, Tudo que você não soube: “Mil vezes estar descacetada numa rua de Berlim, chupando picas azedas pelos becos, do que estar em Niterói, assistindo ao Silvio Santos falar sobre seu carnê.” Ou o desdém que o meio literário tinha sobre sua obra: “Não reverencio os coronéis da cultura. Comecei a fazer sucesso com literatura e isso magoa as pessoas do meio. Sucesso é imperdoável pra essa gente.” Mas nem tudo é riso ou deboche. As partes mais comoventes do filme consistem em ouvi-la contando sobre como teve que superar a dislexia e a experiência de um abuso sexual.

O documentário Um dos nossos: David Chase e a família Soprano, que estreou em 7 de setembro e está disponível na plataforma de streaming Max, começa numa sala de terapia – a réplica exata da sala em que o protagonista mafioso da série célebre de Chase, Tony Soprano, se encontrava semanalmente com Jennifer Melfi, sua psicanalista. Chase surge na cadeira do paciente, de frente para Alex Gibney, o diretor do documentário. Imagens da infância do criador da série aparecem na tela enquanto ele narra algumas memórias, numa espécie de fluxo de consciência.

“Conte um sonho e perca um leitor”. A frase atribuída a Henry James poderia servir bem a sessões de terapia filmadas ou narradas: se ouvir um sonho alheio pode ser tedioso, imagine vários. A premissa de Gibney, porém, é a de explorar alguns aspectos autobiográficos de Família Soprano, sobretudo a ligação entre a mãe de Tony, Livia Soprano (interpretada magistralmente por Nancy Marchand) e a mãe do próprio Chase, que em certa medida inspirou a série. 

De todo modo, o início vagamente experimental do documentário rapidamente dá lugar a uma forma mais simples de narrar, em que diversos membros do elenco relembram episódios das filmagens. O resultado é uma historiografia despretensiosa que entrega pepitas de informação triviais e ao mesmo tempo valiosas para aficionados. Drea de Matteo, que interpreta Adriana La Cerva, por exemplo, ganhou sua vaga no teste de elenco ao esticar a vogal de uma onomatopeia (quando empurrada, disse “Ow-aaa” em vez de “Ow”, uma sutileza ítalo-americana que encantou o diretor). Martin Scorsese não gostava da série, em parte porque estranhava a escolha de Nova Jersey em detrimento de Nova York para ambientá-la. Chase inicialmente queria contar uma história de máfia sem usar violência – regra que depois considerou boba e eliminou. 

Gibney tempera essas informações soltas com imagens dos testes de elenco para a série – mostrando James Gandolfini, Michael Imperioli e Edie Falco, entre outros, lutando pelos seus papéis em meio a vários rostos desconhecidos interpretando Tony, Christopher, Carmela e tantos outros personagens que se firmaram na psique dos espectadores nos últimos 25 anos. Gibney também relata as dificuldades que Chase teve para vender a série. A HBO – na época ainda uma coadjuvante entre estúdios, sem a reputação de excelência da qual goza hoje – só a comprou depois de muitas dúvidas e enrolação. 

Gibney atiça a nossa ilusão de inevitabilidade (por um triz a série não foi feita!) ao mesmo tempo que a desfaz, pois bastaria que um dos testes de elenco tivesse um resultado diferente para que Família Soprano fosse distinta de como a conhecemos. Talvez inspirado na visão de mundo de Chase, Gibney não aposta em uma grande explicação para o sucesso inesperado da série. Em vez disso, mostra como o caos do acaso, a sorte, decisões instintivas de criadores e decisões improváveis de executivos podem confluir para algo grandioso e permanente.

O Outubro (2024) é uma das mais de cinquenta obras que a paulistana Fernanda Valadares apresenta na exposição Liberdade É Pouco, em cartaz no Centro Cultural Octo Marques, na região central de Goiânia. 

Nessa obra, uma escada é a protagonista. A pintura é composta de dois desenhos – em ambos a escada aparece numa sala, mas à frente e ao lado dela não há nada. Nem objeto nem bicho nem pessoa. O ambiente vazio prende quem olha. O silêncio parece ser induzido pela transparência da composição, aspecto obtido pela técnica que a artista usa, a encáustica – um preparado de cera que serve de aglutinante ao pigmento usado na pintura. 

O teto, que no primeiro desenho é mais baixo, ganha mais altura no segundo. Há um quê de liberação nessa diferença, acentuada por uma luz mais clara que aparece sob a escada no segundo momento.

Os degraus da escada são marrons, assim como o guarda-corpo, que envolve a estrutura e lembra um casco de proteção. O guarda-corpo, de aspecto oxidado, induz uma investigação sobre que material seria aquele, caso a cena fosse real. Talvez aço corten.

Outubro faz parte da série Espejismo. Valadares diz que o ponto de partida do trabalho foi um “render”, projeto arquitetônico em formato digital. “Fiquei pensando nas pessoas que constroem casas grandiosas e depositam todos seus sonhos nisso. É lógico que isso não se concretiza e as pessoas ficam presas a essa expectativa”, diz a artista.

Na inédita série Carceri (título é emprestado do italiano), o tema do aprisionamento se torna mais literal  a artista se inspira em imagens de prisões, a exemplo do Carandiru. A sensação de isolamento igualmente pode tomar forma nas obras a partir do meio ambiente, quando formações rochosas se conformam como obstáculos para ver o que está além. Mas às vezes a sensação transmitida por outras obras de Valadares consiste em justamente o oposto de aprisionamento. Na série Outeiros, por exemplo, que traz as formações rochosas, o tríptico formado por Sincorá,  Órgãos e Cipó, todos de 2024, nos permite ver a paisagem-amálgama de forma contínua e vagarosa, tal como se apresenta em uma janela de ônibus, durante uma viagem – o que traz um certo apaziguamento do espírito. 

Percebidas como isolamento ou como transcendência, as obras de Valadares geralmente pedem uma investigação, nos engajam e nos levam a reflexões existenciais.

“Deitada de barriga para cima lendo Lina Meruane você mexe com o calcanhar no meu sexo enquanto eu me retraio cada vez mais na ponta do sofá olhando compulsivamente para Gaza.” É assim, transitando a fronteira desconfortável entre a atração dos corpos e a destruição deles, entre o sexo e o genocídio, que o autor Tiago Ferro escreve Olho nu, seu conto publicado na edição de setembro da piauí. O título é compacto, mas imensamente sugestivo – remetendo tanto à alta pornografia de Georges Bataille (citado explicitamente no texto) como à avalanche de imagens violentas a que somos expostos incessantemente na internet e que parecem nos anestesiar. Ao achar formas inventivas de conectar essas duas pornografias – diluindo a fronteira entre angústias públicas e privadas –, Ferro produz um conto perturbador, que realça os perigos da indiferença.


Ilustração_Denny Chang_2024

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