Assisti ao vídeo da
entrevista de Alexandre Frota para o programa do Rafinha Bastos, em que
o dublê de dublê conta e simula, aos risos e para deleite de
apresentador e da plateia, como “comeu” uma mãe de santo.
Enquanto
fritava a cabeça para escrever algo a respeito (é um dilema paralisante:
por onde começar?), encontrei este texto da escritora Daniela Lima,
ativista do Coletivo Jandira e uma das vozes mais refinadas (e certeiras) da análise social e política atual. Reproduzo abaixo, com a licença da autora:
Na semana passada, Alexandre Frota descreveu em detalhes,
incentivado por risos e aplausos catárticos, como estuprou uma Mãe de
Santo, durante uma entrevista no programa Agora é Tarde. Rafinha Bastos
queria levar a situação ao limite e incentivava que Frota repetisse que
“comeu uma Mãe de Santo”. Quero falar sobre isso em 3 partes: cultura do
estupro, preconceito contra religiões de matriz africana e riso.
(1) Cultura do estupro – os aplausos e risos catárticos durante a
fala de Alexandre Frota revelam aquilo que a ideologia pretende
esconder: na nossa sociedade, o estupro é naturalizado. Essa
naturalização é disseminada nos processos de socialização: seja pela
escolha de ensinar mulheres e não serem estupradas (num ciclo de
culpabilização da vítima) e não homens a não estuprar. No constante
julgamento dos corpos femininos na esfera pública, como se eles
existissem para servir os homens. Ou ainda na diferença drástica entre o
“não” de um homem e o “não” de uma mulher. Mulheres são menos cidadãs,
já que a sua autonomia, a soberania sobre o seu próprio corpo é
reduzida. E ninguém vê nenhum problema em transferir essa autonomia para
o Estado, a Justiça, a polícia, outros homens. A validade do
consentimento, desejo e autonomia são distintamente considerados, de
acordo com o gênero.
(2) Preconceito contra religiões de matriz africana – essa
redução da validade do consentimento ainda se agrava, se levarmos em
consideração diferenças sociais, raciais, religiosas e de orientação
sexual. O fato de a mulher ser uma Mãe de Santo, explorado como motivo
de riso, parecia reduzir ainda mais a sua autonomia. Troque Mãe de Santo
por “freira”, por “pastora” ou “missionária” e imagine líderes
religiosos, parlamentares e a sociedade exigindo que esse programa saia
do ar imediatamente. Por que isso não ocorre com as religiões de matriz
africana?
(3) Riso – o riso é quase
sempre do outro. Uma forma de se colocar em condição de superioridade ao
outro, que assume o lugar do risível. Baudelaire diz que quem ri revela
sua miséria infinita. Eu iria um pouco mais adiante: também revela a
ideologia na qual está inserido. O riso é um ato político. Risível é a
precariedade daqueles que tentam reafirmar o seu poder sobre o outro e
acabam revelando a própria miséria.