Em 2011, nas traseiras de automóveis de todo o Brasil, a Família Feliz ganhou destaque. Os adesivos,
vendidos em bancas de jornal, postos de gasolina e até na internet,
estampavam pais, mães, crianças, avós e até mesmo os animais de
estimação que faziam parte de cada família. Muitos adoraram a iniciativa
e correram montar a sua, enquanto que outros acharam a ideia
detestável. Muito além de qualquer opinião sobre gosto pessoal, contudo,
pode-se afirmar que a moda desses adesivos foi útil para revelar, da
forma mais despretensiosa possível, que a família não é mais apenas aquela formada por um pai, uma mãe e um filho. A família brasileira, mais do que nunca, vem também em novas configurações.
Mães e pais solteiros, divorciados que unem suas famílias, casal de homossexuais que têm filhos de um relacionamento heterossexual anterior, crianças que são criadas pelos avós, pessoas que só tem seu animal de estimação como família, praticantes do poliamor, heterossexuais que adotam, homossexuais que adotam, casais sem filhos, amigos que moram juntos, três gerações que dividem o mesmo teto, casais divorciados que vivem na mesma casa:
as possibilidades são diversas. E é justamente por isso que os adesivos
dos membros da Família Feliz eram vendidos separadamente. Cada pessoa
podia montar a sua.
Foto: Reprodução/Imgur
Famílias do Brasil
O Censo de 2010 do IBGE mostra que a família brasileira se multiplicou, trazendo 19 laços de parentesco, contra 11 presentes no censo de 2000. O conceito tradicional de família, composta por um casal heterossexual com filhos, esteve presente em 49,9% dos lares visitados, enquanto que em 50,1% da vezes, a família ganhou uma nova forma. As famílias homoafetivas já somam 60 mil, sendo 53,8% delas formada por mulheres. Mulheres que vivem sozinhas são 3,4 milhões, enquanto que 10,1 milhões de famílias são formadas por mães ou pais solteiros.
Quem é a sua família? Se ela não segue os moldes tradicionais, ela pode ser considerada menos válida? Parece óbvio que a resposta é não.
Entretanto, principalmente no caso de composições envolvendo casais
homossexuais e praticantes do poliamor, a resposta para essa pergunta
não raro vem com um “sim”, recheado de preconceito e desinformação. Também respondem dessa forma alguns parlamentares em Brasília.
Imagem: Reprodução. A campanha #NossaFamíliaExiste, que convida as pessoas a mostrarem suas famílias no Facebook, foi criada pela página Casamento Civil Igualitário.
É o caso do deputado Ronaldo Fonseca (PROS-DF), relator de um dos mais polêmicos projetos de lei dos últimos anos: o Estatuto da Família. Neste documento, ele busca definir família exclusivamente como a união entre um homem e uma mulher, vetando, por exemplo, que casais homossexuais adotem crianças. Segundo ele, “faz
necessário diferenciar família das relações de mero afeto, convívio e
mútua assistência; sejam essas últimas relações entre pessoas de mesmo
sexo ou de sexos diferentes, havendo ou não prática sexual entre essas
pessoas”. Ora, se família não é quem provê afeto e suporte recíproco em uma rotina, o que é família?
Do que é feita uma família?
“Uma definição que me agrada é a de
pensar que a minha família é composta por aqueles com quem eu conto.
Hoje, todas as formas de família são aceitas pela Associação Brasileira
de Terapia Familiar (ABRATEF). Pelo IBGE, a única forma não aceita de
família é a de um grupo de adultos que mora no mesmo local sem laços de
sangue ou relacionamentos romântico-afetivos. Nesse caso, o IBGE
classifica esse grupo como ‘moradia em conjunto’”, explicou Marcos Naime Pontes, psiquiatra e terapeuta de família e de casal, em entrevista ao Hypeness.
Segundo ele, o que hoje nós chamamos de “novas configurações de família”
é algo que sempre existiu, embora sem que houvesse um reconhecimento
público ou jurídico. Mas mesmo com propostas como o Estatuto da Família,
a Justiça Brasileira tem mostrado grandes avanços no que diz respeito à desbiologização da família
e à quebra do modelo familiar baseado em uma relação heterossexual
monogâmica em que o pai é a figura-chefe. Diferente do que defende o
Deputado Ronaldo Fonseca, o afeto adquiriu um papel
bastante relevante juridicamente, permitindo que as discussões sobre
filiação fossem levadas a um outro nível.
Imagem © Ministério da Justiça/Facebook
“A verdade sociológica da filiação
se constrói, relevando-se não apenas da descendência, mas no
comportamento de quem expende cuidados, carinho e tratamento, quer em
público, quer na intimidade do lar, com afeto verdadeiramente paternal,
construindo vínculo que extrapola o laço biológico, compondo a base da
paternidade”, afirma o advogado e professor de Direito Luiz Edson Fachin.
Como resultado disso, temos casos como o do rapaz que, tendo sido abandonado pelo pai ainda na infância, foi autorizado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) a remover o sobrenome paterno de seu nome civil e adicionar o sobrenome de sua avó materna,
que dele cuidou durante toda a infância e adolescência. A ausência de
um vínculo afetivo foi mais que suficiente para que o STJ lhe garantisse
esse direito. Afinal, a Justiça cada vez mais entende que o nome civil
faz parte da formação e consolidação da personalidade e que a família se
constitui no afeto.
Foi também por decisão judicial que uma família conseguiu alterar a certidão de nascimento do garoto Guilherme Zaroni, colocando, além do nome da mãe e do pai biológicos, o nome da madrasta.
Com a morte da mãe biológica ainda nos primeiros anos de vida, o garoto
e Margit Zaroni, a esposa de seu pai, tiveram uma grande aproximação
afetiva e então surgiu o desejo de ter isso marcado também legalmente. A isso se dá o nome de filiação socioafetiva e a decisão colocou na certidão de nascimento do menino o nome de duas mães e de seis avós.
Foto © Margit Zaroni/Arquivo Pessoal
Na semana passada, foi o Supremo Tribunal Federal (STF) que garantiu a um casal homossexual o direito de adotar. Ao negar um recurso do Ministério Público do Paraná, a Ministra Cármen Lúcia
defendeu que o conceito de família, envolvendo regras de visibilidade,
continuidade e durabilidade, também podem ser aplicados a casais
homoafetivos. A decisão teve como base também o reconhecimento, em 2011, da união estável entre parceiros do mesmo sexo, feita pelo ministro Ayers Britto. “A
Constituição Federal não faz a menor diferenciação entre a família
formalmente constituída e aquele existente aos rés dos fatos. Como
também não distingue entre a família que se forma por sujeitos
heteroafetivos e a que se constitui por pessoas de inclinação
homoafetiva”, afirmou ele na época.
Foto © Marcelo Jesus/UOL
Contudo, apesar de todas essa decisões, é preciso que haja leis e políticas públicas mais claras em relação às novas famílias.
Afinal, se um casal heterossexual que deseja adotar uma criança só
precisa se candidatar para tal, um casal homossexual que busca o mesmo
precisa dar entrada judicialmente a seu pedido – uma caminhada que,
embora agora com mais chances de ser bem sucedida juridicamente, é
desgastante e tortuosa.
Novas famílias e as crianças
Em uma enquete pública no site da Câmara dos Deputados, questiona-se o posicionamento da sociedade em relação ao Estatuto da Família. “Você
concorda com a definição de família como núcleo formado a partir da
união entre homem e mulher, prevista no projeto que cria o Estatuto da
Família?” Até o momento em que escrevo este texto, mais de 5 milhões de votos já foram computados, sendo 53,6% deles para “Sim” e 46,08% para “Não”.
Em muitos dos comentários, cita-se Deus e a Bíblia como bases para concordar com o Estatuto e questiona-se a influência dos novos conceitos de família no desenvolvimento das crianças. Como afirmou o psiquiatra Marcos Naime Pontes em entrevista ao Hypeness, “os
estudos mostraram que essa diversidade não traz patologias ou
distúrbios de comportamento diferentes dos que já acontecem nos modelos
tradicionais de família. Isso tudo ajuda a diminuir o preconceito e a
abrir espaço: discussão, informação pública e a constatação de que essas
novas formações não são fontes de sofrimento psíquico para integrantes
dessas famílias. Já o preconceito e a exclusão são.”
Foto: Reprodução. Este é o Carlos Henrique e suas duas mães: Priscila e Bel
Segundo ele, o uso do modelo tradicional
de família como referência na Psicologia deve-se ao fato de que este
era o único considerado pela ciência há algumas décadas. Contudo, isso
vem mudando. Até mesmo quando menciona-se a necessidade de haver papéis masculinos e femininos como base para o desenvolvimento de uma criança, hoje isso não é exclusivo à família. “Podemos
pensar que homens e mulheres estão em todos os lugares e em todas as
famílias, e as famílias se relacionam com esses homens e mulheres o
tempo todo. As crianças teriam esses modelos não só dos pais ou das
mães. Outra forma de pensar é a de que a construção de homem/mulher é
apenas uma das formas de dividir o mundo. Aquilo que foi atribuído ao
masculino ou feminino é muito mais variado hoje e está mais ligado a
cada pessoa do que a um ou dois gêneros”, afirma.
Foto: Reprodução. Marco Aurélio e Roberto de Souza Silva são pais deste casal de gêmeos.
Foto: Reprodução. Laura e Marta são mães dos pequenos Clarissa, Rosa e José.
A fortaleza em que se colocava a distinção entre o masculino e o feminino, bem como a constituição tradicional da família deixa, aos poucos, de existir. É crescente a insatisfação com delimitações por causa de gênero.
Cores, brinquedos e profissões ainda hoje são encaradas como masculinas
ou femininas, mas a consciência de que isso é um limite culturalmente
imposto e que está prestes a ruir está cada dia mais presente.
A diversidade sexual, a
igualdade de gêneros e a pluralidade afetiva não representam ameaça à
família, mas integram-se como novas possibilidades. Ter essas
famílias reconhecidas pública e juridicamente é algo positivo para a
sociedade. Vale lembrar que uma pessoa satisfeita em seu relacionamento
familiar e sexual prova-se mais tranquila e estimulada em todas as
áreas de sua vida. Em outras palavras: gente feliz não enche o
saco. Deixemos que todas as famílias sejam felizes, cada qual à sua
maneira, na traseira de automóveis, na rua ou no conforto do lar.
Novas configuracoes de familias provam que o amor vai muito alem do tradicional mae + pai + filhos via Hypeness .
Eu: para quem se ofende com a família deles, repasso essa família:
Mãe é condenada por torturar seus filhos
O
Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJGO) manteve a condenação de
uma mãe por tortura a seus filhos, que, à epoca, tinham 11 e 15 anos de
idade. A decisão é da 1ª Câmara Criminal do TJGO que, por unanimidade,
seguiu voto do relator, desembargador Nicomedes Borges e
endossou sentença do juiz da 2ª Vara Criminal de Formosa, Fernando
Oliveira Samuel, condenando Kátia Kélvia Alves a 3 anos e 9 meses de
reclusão, em regime aberto.
Consta dos autos que Kátia agrediu sua filha mais velha com pedaço de pau e água quente e forçou seu filho mais novo a comer bananas contra sua vontade e, após vomitar em razão do excesso de comida, fez com que ele ingerisse seu próprio vômito. Ela recorreu buscando sua absolvição por ausência de dolo ou pela concessão do perdão judicial e, alternativamente, pediu a redução da pena.
O desembargador reconheceu a autoria e materialidade do crime pelas provas contidas nos autos. Ele ressaltou que Kátia não negou o fato e apenas afirmou, perante juízo, que os motivos foram outros. Ela justificou suas atitudes em razão de “ser nervosa e tomar remédios controlados”. Já seus filhos, quando ouvidos perante autoridade judicial, confirmaram as agressões da mãe.
Relatórios
O magistrado também destacou os relatórios médicos e do conselho tutelar apresentados. Segundo o Conselho Tutelar, Kátia afirmou que jogou água fervendo em sua filha e que não a queria mais em casa, pois “poderia perder a cabeça com a adolescente e fazer coisas piores”.
Além disso, os documentos médicos confirmaram a queimadura de 2º grau nas pernas da menina, causada pela água quente e lesões na mão esquerda do filho mais novo, “produzidas pela ação do martelo”. Segundo Nicomedes Borges, a conduta de Kátia se adequa ao crime de tortura, pois ela agiu com intenção de causar, aos seus filhos, “sofrimento atroz e insuportável”.
Consta dos autos que Kátia agrediu sua filha mais velha com pedaço de pau e água quente e forçou seu filho mais novo a comer bananas contra sua vontade e, após vomitar em razão do excesso de comida, fez com que ele ingerisse seu próprio vômito. Ela recorreu buscando sua absolvição por ausência de dolo ou pela concessão do perdão judicial e, alternativamente, pediu a redução da pena.
O desembargador reconheceu a autoria e materialidade do crime pelas provas contidas nos autos. Ele ressaltou que Kátia não negou o fato e apenas afirmou, perante juízo, que os motivos foram outros. Ela justificou suas atitudes em razão de “ser nervosa e tomar remédios controlados”. Já seus filhos, quando ouvidos perante autoridade judicial, confirmaram as agressões da mãe.
Relatórios
O magistrado também destacou os relatórios médicos e do conselho tutelar apresentados. Segundo o Conselho Tutelar, Kátia afirmou que jogou água fervendo em sua filha e que não a queria mais em casa, pois “poderia perder a cabeça com a adolescente e fazer coisas piores”.
Além disso, os documentos médicos confirmaram a queimadura de 2º grau nas pernas da menina, causada pela água quente e lesões na mão esquerda do filho mais novo, “produzidas pela ação do martelo”. Segundo Nicomedes Borges, a conduta de Kátia se adequa ao crime de tortura, pois ela agiu com intenção de causar, aos seus filhos, “sofrimento atroz e insuportável”.
Perdão judicial
Kátia alegou que vive em harmonia com seus filhos há mais de dois anos e, por isso, pediu a concessão do perdão judicial. O desembargador, no entanto, não observou nenhum dos requisitos para sua autorização. Ele esclareceu que, no caso de Kátia, se trata de um crime doloso e que, além disso, ela “teve tempo de refrear suas atitudes” e, ao invés disso, “denotou crueldade e maldade”.
Quanto à pena, o magistrado julgou que ela deveria ser mantida inalterada, pois foi “devidamente justificada pelo dirigente do feito, ficando definitivamente estabelecida em quantum suficiente para atender a tripla finalidade da reprimenda, repressão, prevenção e ressocialização”. (Texto: Daniel Paiva – estagiário do Centro de Comunicação Social do TJGO)
fonte: TJGO