26 dezembro, 2024

revista piauí

 

O Colibri, romance do escritor italiano Sandro Veronesi, é uma jogada que começa no meio de campo e vai trançando firulas bonitas de se ver até chegar ao golaço. Na forma, o livro, que venceu o Strega em 2020, o mais prestigioso prêmio literário italiano, é espertíssimo. Os capítulos são blocos narrativos feitos ora de cartas, ora de mensagens de celular, e-mails, conversas telefônicas, ou outros recursos. São tijolos que não são colocados em disposição cronológica e vão jogando o leitor num vai-e-vem habilidoso, em que as datas são o de menos, exatamente como acontece nas memórias das pessoas.

O resultado é uma arquitetura nos trinques para servir a história de Marco Carrera, um oftalmologista capaz de suportar toneladas de dor – alguém que acaba se mantendo de pé por meio dos cuidados com outras pessoas e, em alguns casos, até mesmo pela devoção. O percurso do personagem – um sujeito meio ingênuo, mas de uma capacidade de resistência à toda prova –, já tem seus encantos. A essa boa história, no entanto, somam-se as pensatas sensacionais – ensaios em miniatura – que de repente pulam do texto. Há alguns ótimos momentos para voltar e reler, como a tese de que o final de toda história entre duas pessoas já está escrito nos primeiros momentos – e elas adivinham qual é, mas esquecem nos minutos seguintes, do contrário não poderiam vivê-la. Ou da necessidade de cultivar prazeres em meio ao luto, para tecer um arremedo de vida que vai virando a própria vida. Ou mesmo sobre a lógica dos jogos de apostas, baseados em um pensamento mágico cujo maior efeito é o desprezo por tudo aquilo de bom que já se tem. Quando a jornada de Carrera se encerra, o autor expõe as estruturas desse prédio, detalhando de onde tirou todas as suas referências. É coisa de mestre.

Dalton Trevisan é certamente um dos autores mais obsessivos e minimalistas do mundo. Sua obsessão se manifesta no afã de reescrever frases, orações e períodos ad infinitum, sem nunca atingir a plena satisfação. Já o minimalismo decorre da ânsia de economizar palavras, de dizer muito com praticamente nada. Quais escritores unem ambas as características de maneira tão eficaz e duradoura como o Vampiro de Curitiba? Lembro-me, agora, dos americanos Ernest Hemingway e Raymond Carver. Nenhum dos dois, porém, chegou perto de viver tanto quanto Trevisan, que morreu em 9 de dezembro passado, seis meses antes de completar 100 anos.

Ele lançou Novelas nada exemplares no finzinho da década de 1950. Trata-se do primeiro livro que não renegou (os anteriores caíram no esquecimento). A partir de então, o autor protagonizou uma carreira bastante fértil, que trouxe à tona mais de quarenta títulos. Segundo as notícias que sopravam da Alameda Doutor Muricy, no Centro curitibano, onde o detento literato morava, ele morreu ainda ativo.

O selo infantil Reco-Reco, do Grupo Record, publicou recentemente um livrinho que exemplifica bem o método do escritor. Chama-se O ciclista e apresenta uma história muito simples. São apenas duzentas e poucas palavras, distribuídas por 32 páginas. As ilustrações esfumaçadas de Odilon Moraes e a diagramação repleta de vazios possivelmente despertam o interesse das crianças, mas os adultos também podem apreciar a odisseia do rapaz que desafia o trânsito pesado de uma metrópole enquanto guia uma frágil bicicleta. “Curvado no guidão lá vai ele numa chispa – e a morte na garupa”, anuncia o parágrafo inicial da trama.

O texto nasceu como reportagem em outubro de 1952. Durante os nove meses seguintes, Trevisan o reelaborou e transformou em conto. Depois, ao longo de várias décadas, o cortou mais e mais e mais. Só guardou a ceifadeira quando a narrativa se tornou minúscula. No processo, o personagem principal abdicou de se chamar José e ficou sem nome, deixou de entregar sorvete e trocou o chapéu por um boné. A campainha da bicicleta, que antes gritava fom-fom, acabou ecoando trim-trim. O resultado final, paradoxalmente trágico e lírico, demonstra que a prosa urbana pode, sim, alcançar a força simbólica e a perenidade dos relatos míticos. O livro oferece, ainda, um breve e saboroso ensaio sobre o pequeno conto. Quem o assina é o crítico Augusto Massi, professor de literatura brasileira na USP.

O livro O Showman - Os bastidores da guerra que abalou o mundo e forjou a liderança de Volodymyr Zelensky , do jornalista americano Simon Shuster, pode não explicar historicamente os motivos do conflito entre Rússia e Ucrânia, prestes a completar três anos. Mas detalha aspectos da personalidade do presidente ucraniano que talvez ajudem a entender os motivos para o enfrentamento ainda não ter acabado pelas vias diplomáticas.

Shuster, da equipe da revista Time, passou meses ao lado de Zelensky, apesar da resistência dos generais do presidente em dar tamanho acesso ao jornalista. O curioso é que, intencionalmente ou não – já que, presume-se, pelo subtítulo, que o autor estaria falando de um herói e não de um vilão – seu protagonista pode ser entendido de duas maneiras. Uma é de que se trata de um comediante transformado num bravo presidente, que liderou um movimento de resistência no seu país contra os russos. Outra – como foi o caso da minha leitura – é de que se trata de uma personalidade narcisista, que, ao invés de cumprir o acordo diplomático com o presidente russo Vladimir Putin, intermediado pela Turquia, para que a Ucrânia se tornasse um país neutro entre Ocidente e Oriente, preferiu ceder ao canto da sereia da Organização do Atlântico Norte (Otan), liderada pelos Estados Unidos. Ao tentar filiar a Ucrânia à organização, Zelensky conduziu seu país a uma guerra que, segundo estimativas de alguns especialistas, já matou mais de 400 mil soldados, milhares de civis, e ameaça o mundo com um conflito nuclear.

O livro oferece algumas pistas, talvez não intencionais, de que, ao invés do herói propalado pelo Ocidente, Zelensky era extremamente despreparado para ocupar a presidência. Ele se elegeu valendo-se do personagem ficcional de um professor de história que interpretava no programa cômico na tevê O servo do povo, de grande sucesso na Ucrânia, que prometia acabar "com tudo que está aí" e fazer tudo novo. A Ucrânia sofria com a corrupção e a desilusão com a classe política, mas o personagem que Zelensky interpretava, além de não apresentar qualquer saída para os problemas que atacava, não era real. A oposição solicitou que o programa que xingava tudo e todos fosse tirado do ar durante a campanha presidencial, já que se tratava de campanha disfarçada, mas a justiça eleitoral do país achou por bem mantê-lo.

O resultado é que seu governo foi um desastre logo de cara. Como passara a vida na ribalta e não no palco da realidade, Zelensky não tinha quadros políticos, mas apenas seus amigos comediantes – que entendiam de comédia, mas não da gestão de um país. Para negociar com os experientes diplomatas russos, Zelensky mandou um amigo, dono de uma empresa de vídeo, que chegou na reunião de camiseta e boné virado para trás. O enviado voltou impressionado com o fato de os diplomatas russos usarem ternos. 

Segundo Shuster, o governo de Zelensky era tão ruim que, quando a Rússia invadiu a Ucrânia, a popularidade do presidente era de 20%. O autor afirma que a guerra ajudou a mantê-lo no cargo. Zelensky começou a usar uma camiseta verde-oliva como se fosse um soldado em combate: ganhou centenas delas de presente de uma confecção de camisetas, para fazer propaganda. A camiseta virou moda, enquanto os soldados reais morriam no campo de batalha. A narrativa de Shuster mostra um Zelensky de personalidade infantil, brincando de super-herói, fazendo posts nas mídias sociais e criando situações de risco para o exército para ser filmado por jornalistas, entre outras frivolidades.

Em 2023, Zelensky suspendeu as eleições e se tornou um ditador. Resta, agora, saber como o seu ídolo, Donald Trump, reagirá (segundo o livro, Zelensky ficou decepcionado ao não conseguir selfies com Trump quando o encontrou para discutir a questão da Rússia durante o primeiro mandato do americano). Por essas e por outras, cabe ao leitor de O Showman decidir em qual dos dois Zelensky apostar: na figura notável, como definida pela jornalista americana Anne Applebaum, ou no farsante inscrito nos detalhes de Shuster.

"Fulano foi o primeiro de sua família a entrar na universidade." Desde a adoção da política de cotas, essa situação tem se tornado mais comum no cotidiano de pessoas que compõem as chamadas minorias no Brasil. Frases desse tipo exaltam o avanço, mas omitem a dificuldade de permanência na academia, tema fundamental do livro De onde eles vêm, o romance mais recente de Jeferson Tenório, autor agraciado com o Prêmio Jabuti de 2021 pelo Avesso da Pele.

Obstáculos a serem superados pelo garoto não são fáceis de destrinchar. Não é apenas a urgência do sustento que atormenta Joaquim, que é órfão e mora com a tia, com quem divide a tarefa de cuidar de uma avó idosa. O protagonista também tenta decifrar o mundo dos livros, pelo qual se apaixona, tendo inicialmente a orientação do amigo Sinval. Joaquim quer decodificar os trejeitos e códigos sociais das classes média e alta, que frequentam a universidade. Com humor, tipifica quem está acostumado a tratar o outro como categoria.

Mas Joaquim não é um tipo sociológico, é uma pessoa, como qualquer outra, que ama. Para embolar e cutucar as premissas de leitores que esperam um personagem moralmente correto, tem comportamento machista com uma de suas namoradas. Seu destino não cabe numa biografia linear ou exemplar: ele se esforça para continuar na faculdade, não consegue, desiste, trabalha em subempregos e busca fugas variadas. O seu futuro, ao vento pertence. As crises no Brasil e no mundo se sucedem como um eco.

É também preciso destacar o modo divertido que o autor tem de aproximar os leitores de clássicos, como James Joyce, em cenas ousadas. Leia ouvindo música, bebendo cerveja, ou vinho.

Irreverente e apimentado para os padrões de comportamento do final do século XIX, o romance de estreia da escritora francesa Sidonie-Gabrielle Colette (1873-1954) entrou recentemente em domínio público. A obra original foi lançada na França em 1900 e assinada sob o pseudônimo do primeiro marido de Colette, “Willy”, Henry Gauthier-Villars, um renomado escritor e editor na época, de quem poucos se lembram hoje. Pela editora Meia Azul, a obra chegou ao Brasil este ano pela primeira vez com o nome correto de sua verdadeira autora.

Primeiro livro de uma tetralogia, Claudine na escola é um romance de formação sobre uma aluna indomável numa escola pública no interior da França, baseado na vida da própria autora. Claudine é órfã de mãe e foi criada pelo pai com algum distanciamento, o que lhe dá autonomia e liberdade para ser quem ela é: contestadora, esperta e sem medo de forçar os limites do ambiente escolar. Em suma, da pá virada. Com essas credenciais, ela se apaixona pela professora de inglês, Aimée, que por sua vez tem um noivo, mas cultiva um romance secreto com a diretora da escola.

Logo no primeiro parágrafo do livro, Claudine diz: “Moro em Montigny, onde nasci. Provavelmente não morrerei no mesmo lugar.” Ou, mais adiante, “Não se pode agradar a todos. Prefiro agradar-me primeiro”, “Farei minha entrada no mundo e cometerei mil gafes”, demonstrando que apesar de tão moça ela já sabe quem é, cheia de ambição e com a bússola apontada para Paris (tema do próximo livro). A história traz uma sucessão de peripécias da jovem no ambiente conservador da escola, com ideias e atitudes de uma alma atormentada por um presente que não a representa, mas que ela consegue viver intensamente.

As aventuras de Claudine são saborosas pela graça e inteligência da personagem e sua obstinação afiada. Ela é uma observadora perspicaz de tudo ao seu redor, e a ambição é sua guia. Há muitas Claudines entre nós – quem nunca teve uma amiga mais ou menos assim? A diferença é que naquela época a vida era bem mais dura. Se uma garota assim não passa despercebida hoje, imagine num colégio conservador do século retrasado.

Depois da leitura do primeiro volume, a vontade é de acompanhar Claudine para ver como ela se sai na vida adulta. Agora é torcer para que a editora Meia Azul publique também os outros três livros da série.

Um artigo na revista americana Dazed , publicado em julho de 2024, perguntava no título: Por que homens heterossexuais não leem romances ? Os motivos são os mais detestáveis, e confesso que senti o golpe. Passei então a priorizar por um tempo livros de ficção, que estavam levando de 7 a 1 nas minhas prioridades.

Lendo Passeio com o gigante , de Michel Laub, tive a sensação de roubar um pouco no jogo. O romance é uma narrativa ficcional bastante inventiva na forma, mas permeada por questões recentes como as eleições presidenciais de 2018, a divisão ideológica do país e a pandemia da Covid, que dão ao livro a temperatura do noticiário.

Em meio a memórias e reflexões, o advogado sionista Davi Rieseman se lembra de dores da própria infância e cita episódios históricos. Por volta de cem anos atrás, em uma época na qual lideranças como o reitor de Harvard consideravam judeus uma raça inferior e doente, floresceu nos Estados Unidos a ideia (importada da Europa) do “judaísmo musculoso”, pela qual a obsessão com a forma física se tornou um modo de combater esses estereótipos racistas. Nesse contexto, surgiram boxeadores judeus campeões de nomes como Joe Choynski e Kid Kaplan, e o maior de todos: Benny Leonard.

É por isso que se chama Benny Seguros a empresa que o advogado assume depois da morte do sogro, um judeu rico e apegado às tradições. Em 2018, pensando no que julgava melhor para a comunidade judaica brasileira (e para os próprios negócios), o herdeiro usa a companhia para apoiar financeiramente o candidato de extrema direita que se saiu vencedor na disputa pelo Palácio do Planalto.

O texto nunca nomeia o político, mas é explícito em suas consequências: chega a pandemia e a mulher do advogado convalesce num hospital enquanto o presidente debocha da falta de ar dos doentes de Covid numa transmissão pela internet. Presente e passado se embaralham no texto, e para o leitor não convém desembaralhá-los: nos borrões do fluxo de pensamento do personagem, a leitura fica mais instigante – e, de alguma maneira, entre arrependimentos e contradições, se torna muito mais clara. 

“Se uma casa tem uma iluminação muito clara até o último canto, ela se torna inabitável. É o mesmo com a alma, iluminá-la até sua sombra mais escura torna as pessoas ‘inabitáveis’. Estou convencido de que a psicanálise – junto com muitos outros erros terríveis da época – tornou o século XX terrível. Considero o século XX um erro em sua totalidade.”

Esse parágrafo, se escrito por outra pessoa, soaria como uma opinião fanfarrona. Vindo de Werner Herzog, é uma declaração sincera. O cineasta alemão cultiva uma visão mística da vida. Em sua autobiografia, Cada um por si e Deus contra todos – memórias, passa a impressão de que se sentiria mais à vontade nos tempos pré-modernos, quando o mundo ainda comportava mistérios. Dois de seus maiores ídolos, ele diz, são Fábio Máximo, um dos líderes do Império Romano, e Aquenatón, faraó que implantou o monoteísmo no antigo Egito. Figuras tão ambiciosas quanto seus protagonistas Aguirre (do filme de 1972, Aguirre, a cólera dos Deuses) e Brian Sweeney Fitzgerald (do filme de 1982, Fitzcarraldo).

Herzog cresceu na Bavária dos anos 1940, devastada pela derrota dos nazistas. Viveu, apesar da pobreza extrema, “uma infância magnífica”. Com pouca ou nenhuma supervisão dos pais, passava os dias em contato com a natureza, da qual guarda um temor reverencial. É um ótimo contador de histórias, ainda que no livro, como nos filmes, seja difícil saber o que é verdade ou não. Herzog diz que trabalhou pescando lulas em Creta, montando touros no México, soldando peças numa metalúrgica na Alemanha. Diz ter aprendido com um soldado japonês que, no crepúsculo, é possível enxergar o trajeto que as balas de fuzil fazem no ar. E outras anedotas fantásticas. Relata também os desastres da gravação de Fitzcarraldo, que incluem um funcionário tendo de amputar um pé com uma motosserra.

Essa zona cinzenta entre fato e ficção é chamada por Herzog de “verdade extática”. O assunto lhe rende há anos uma rixa com documentaristas, e por isso dedicou um capítulo do livro para se explicar. “A verdade não precisa coincidir com os fatos. Do contrário, a lista telefônica de Manhattan seria o livro dos livros”, argumenta o cineasta. “Só a poesia, só a invenção da arte, pode revelar uma camada mais profunda [...].” Os críticos dizem que Herzog pode inventar a história que bem entender, contanto que, por razões éticas, não a rotule como documentário. Nem como autobiografia, alguns podem dizer.

Um trecho do livro foi publicado na edição de maio da piauí.

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