17 abril, 2025

Dicas culturais da revista piauí

 

Na sequência inicial do filme Oeste outra vez, do diretor Erico Rassi, vemos uma mulher de costas, partindo. Depois disso, não há mais nenhuma outra presença feminina no filme. Elas são até mencionadas, mas nunca vistas. Em um dos melhores filmes brasileiros da temporada, atualmente em cartaz em alguns cinemas seletos, Rassi resgata os principais signos do faroeste e os transporta para o Cerrado brasileiro – mais especificamente, a Chapada dos Veadeiros. Ele retrata um mundo degradado, onde não há mulheres e os homens rudes se caçam em duelos vazios, motivados por princípios torpes.

Tudo começa quando Durval (Babu Santana) decide ficar com a mulher de seu vizinho, Totó (Ângelo Antônio). Totó, dono de um boteco largado em uma viela rural, contrata um pistoleiro e arma uma emboscada para matar Durval. O plano dá errado e Totó se embrenha no mato, fugindo do inimigo que agora quer vingança. É rato caçando rato no Cerrado, enquanto esses homens brutos deixam para trás o legado triste e solitário de suas vidas miseráveis. Pistoleiros chifrudos tentam escapar de suas existências vazias, remoendo amores antigos que os deixaram por causa de seus ciúmes, sentimento de posse e falta de cuidado. Homens que querem ser amados, cuidados – mas relegam suas mulheres ao descaso. 

Dirigindo seu segundo longa-metragem, Rassi é um condutor firme e domina com clareza o universo que constrói e o que extrai de seus atores. Elabora com habilidade – entre o patético e o comovente – o afeto desses homens chafurdados numa masculinidade nociva. O conflito entre civilização e barbárie, a vingança, os duelos, a solidão – tudo o que compõe um bom faroeste está presente em Oeste outra vez. Ângelo Antônio carrega nos olhos a miséria de Totó, enquanto o carisma de Babu Santana reafirma na pele de Durval porque é um dos atores mais requisitados do cinema brasileiro. Os veteranos Antônio Pitanga e Rodger Rogério estão impagáveis. Os diálogos criados por Rassi também são extremamente inspirados, e a equipe de som constrói um dos melhores painéis sonoros do cinema contemporâneo – o som narra o tempo todo e contribui para tragar o espectador para aquele ambiente hostil. Por fim, a criativa direção de arte de Carol Tanajura traduz visualmente o universo degradado desses homens tristes.

Os ruminantes é um documentário que faz um interessante exercício de rememorar e reelaborar o processo criativo de um filme que não pôde existir. Narra a comovente história de um artista que sonhava realizar a grande obra de sua vida, enquanto enfrentava as frustrações de se fazer arte no Brasil. Esse artista é o diretor paulistano Luiz Sergio Person. Depois de se destacar com São Paulo Sociedade Anônima (1965) e o aclamado O caso dos irmãos Naves (1967), Luíz Sergio Person e seu parceiro de roteiro Jean-Claude Bernardet consolidaram seus nomes no cinema nacional e decidiram adaptar o romance A hora dos ruminantes, de José J. Veiga – uma alegoria sobre a opressão imposta a um vilarejo por forças misteriosas. 

É aí que começam as desventuras em série. Os diretores Tarsila Araújo e Marcelo Mello conduzem com delicadeza e habilidade o fio da memória de pessoas que trabalharam e conviveram com Person. É fascinante ouvir Jean-Claude Bernardet discorrer sobre a concepção do projeto, suas intenções estéticas e políticas.  “A gente chamou O caso dos irmãos Naves de um filme ‘Castelo Branco’, e A hora dos ruminantes, passamos a chamar de um filme ‘Costa e Silva’ [...] A violência física tinha sido apresentada nos Naves e o filme tinha que se diferenciar, então cena de tortura nos Ruminantes era impensável. [...] A ideia era abandonar a tortura física e de passar por uma pressão social e psicológica sobre a população.”, afirma. Bernardet também revela que uma das inspirações para o projeto era o filme japonês Juramento de obediência, de Tadashi Imai: “Esse filme tinha um mecanismo de repetição estrutural que ia se acumulando, adensando a compreensão e a emoção da situação”, conta. “Quando percebi que a segunda, a terceira história tinham a mesma estrutura da primeira, minha cabeça fez assim... Não só pela compreensão intelectual, mas pela emoção de intuir o mecanismo estético do filme. Trabalharíamos em nosso filme com a reiteração, mas a cada repetição, a pressão dos opressores subiria de patamar – até levar o povo à resistência e à queda dos invasores.” 

A narração oral fluida do documentário nos convida a imaginar e reconstruir, em nossa mente, o filme que Person não realizou. O cineasta era uma voz dissonante dentro de sua geração e crítico do Cinema Novo, gestado majoritariamente por seus pares cariocas. Considerava que eles faziam um cinema hermético, incapaz de difundir valores progressistas. Ele queria que A hora dos ruminantes fosse um filme popular. “Era um filme feito para ser popular, mas não apenas entretenimento: queria que fosse algo mais, que tocasse a emoção e o intelecto do espectador”, diz o próprio cineasta em imagens de arquivo. Divergências com produtores, sabotagens por parte de agentes da ditadura e outros mistérios impediram Person de concretizar aquele que seria o projeto de sua vida. “Segundo a minha tia Nina, se meu pai fosse embora sem realizar A hora dos ruminantes, ele não iria embora feliz”, diz Marina Person, filha do cineasta. 

Aos poucos, Person vai se tornando um pouco como o protagonista de seu filme mais famoso, São Paulo Sociedade Anônima. Ele abre uma agência de publicidade e passa a ser sufocado pela vida sem sentido da sociedade burguesa. Ele morreu jovem, aos 39 anos, sem realizar seu grande desejo. Mas, de certa forma, o documentário Os ruminantes – que estreou no Festival É Tudo Verdade, nos cinemas do Rio e de São Paulo – é, assim como Cabra marcado para morrer, uma bonita segunda chance de ruminar um filme interrompido pelas circunstâncias políticas.

A Companhia Ensaio Aberto apresenta no palco do Teatro Vianinha, no Armazém da Utopia, na Zona Portuária do Rio, uma lírica encenação de Morte e vida severina, adaptação do poema seminal de João Cabral de Melo Neto, com músicas de Chico Buarque. É vibrante a entrega do elenco, que, em uma marcha de migrantes, canta e interpreta o poema-denúncia do autor pernambucano, retratando a dura realidade do sertanejo nordestino – marcada pela seca, fome, migração e morte.

O texto dialoga profundamente com a proposta estética e política da companhia, cujos espetáculos abordam de forma crítica temas ligados aos direitos humanos, à cidadania e às questões sociais e políticas do país.

Sob a direção sensível de Luiz Fernando Lobo, o público é conduzido junto a um cortejo lírico e comovente de trabalhadores do campo, mas sem jamais perder o rigor e a sobriedade próprios da denúncia social de Melo Neto. A experiência se torna ainda mais impactante graças à impressionante cenografia de J.C. Serroni e à iluminação de Cesar de Ramires, que traduzem em luz e formas as nuances do sertão – com tons que evocam o amanhecer, o entardecer e a escuridão da noite nordestina. Cenografia e luz figuram entre os trabalhos mais expressivos do teatro contemporâneo brasileiro. A direção musical, irretocável e envolvente, é assinada por Itamar Assiere. O sucesso da peça fez o espetáculo ser prorrogado até o fim de abril.

Bossa Nova é um samba tocado por uma moçada que não é do morro. Uma campanha eleitoral é a Olimpíada da publicidade. O brunch é um lanche aristocrático. Eis algumas definições do Bisturi, um glossário com “verbetes de precisão cirúrgica” idealizado pelo jornalista mineiro Eduardo Bento – que, desde 2020, vem compilando definições peculiares, algumas de sua própria autoria, outras com uma ajudinha e contribuições de amigos, figuras infames, grandes músicos e gênios da literatura. Na piauí de abril, você pode acessar 45 definições do Bisturi, todas elas estranhamente corretas, como a definição de banana – um shot de potássio.

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