Chorar a perda da mãe é lamentar a “infância e a juventude” perdidas. Recordando estas palavras de Albert Cohen em O Livro De Minha Mãe (Record), o sociólogo francês Didier Eribon reconhece que algo mudou nele após a morte da própria mãe: “Eu era um filho e agora já não sou.” É essa ruptura radical com a sua filiação que Eribon trata em Vida, velhice e morte de uma mulher do povo, recém-publicado no Brasil pela editora Âyiné. A história começa com a saga do escritor para encontrar uma casa de repouso para a mãe. Ele avalia os detalhes do serviço oferecido por muitas empresas, sem saber que isso pouco importaria: logo que fosse internada, essa mulher que trabalhou como operária e empregada doméstica não teria mais forças para levantar da cama. O isolamento a deprimiu e, em algumas semanas, a levou à morte. Essa é a continuação de um projeto que Eribon iniciou em seu Retorno a Reims (Âyiné), livro escrito depois da perda do pai e que serviu de inspiração para outro autor francês mais jovem, Édouard Louis, se tornar escritor. Agora, Eribon analisa a tensão entre um apego e um afastamento da figura materna. Investiga as raízes do luto, sem mascarar a culpa. Pois, se foi um filho atento aos últimos momentos da vida da mãe no lar de idosos, ele nem sempre esteve ao lado dela, tendo escolhido, na juventude, uma “filiação político-intelectual” e uma “desfiliação sociofamiliar”. A partir da leitura de dois textos sobre a questão – A Velhice de Simone de Beauvoir e A Solidão dos Moribundos de Norbert Elias –, Eribon procura compreender por que os “velhos” não são considerados no campo das teorias políticas. Ao refletir sobre a possibilidade de lhes “dar voz”, contra “a conspiração do silêncio” que Beauvoir evocou, o autor opera num duplo movimento íntimo e reflexivo. Ao tentar compreender a vida e a morte da mãe, Eribon nos convida a construir um pensamento político e médico sobre o setor mais frágil de qualquer sociedade. |
Na manhã de 21 de junho de 1970, quem estivesse folheando o Jornal do Brasil leria na seção de notícias locais que os moradores da Glória, bairro tradicional do Rio, celebravam que as obras para a construção do metrô não fariam desaparecer a charmosa Praça Paris. Na Tijuca, Zona Norte da cidade, um empreendimento imobiliário localizado na Rua Antônio Basilio, 131, prometia um excepcional apartamento, de três quartos, dois banheiros, copa, cozinha e depósito, financiado em 51 meses. A menos de 300 metros deste mesmo apartamento, estava uma das sedes do DOI-Codi, um dos principais órgãos de repressão do regime militar, que menos de dois anos antes decretara o Ato Institucional Nº5, o mais duro cerceamento de liberdades imposto pelo governo da época. Em uma das celas do DOI-Codi estava o jornalista Álvaro Caldas, então com 29 anos de idade. Às duas da tarde, atento ao que saía do radinho de pilha do soldado que guardava sua cela, Caldas se uniria, apesar daquele terrível contexto, a uma ansiedade compartilhada por todos os brasileiros: acompanhar a final da Copa do Mundo na qual o Brasil conquistaria o tricampeonato mundial. Esse é o tema de uma das setenta crônicas do livro Da minha janela não vejo o fim do mundo, da editora Garamond, um compilado de textos escritos entre 2018 e 2023 e publicados no site Ultrajano, do jornalista José Trajano, de quem Caldas é amigo, e no JB Online, o site do Jornal do Brasil. As crônicas mesclam histórias e lembranças de dois períodos históricos: a ditadura militar, com os dramas que Caldas viveu, os amigos que fez e perdeu, e um passado mais recente, com reflexões provenientes do isolamento social provocado pela pandemia da Covid. As crônicas sobre o primeiro período histórico se sobressaem – o que não é de surpreender, dada a história do autor. Uma das primeiras incursões literárias de Caldas foi ainda no período da ditadura, com o livro Tirando o Capuz, publicado em 1981. Nele, Caldas narra suas memórias do cárcere – àquela altura ainda bem recentes. O livro é uma das primeiras obras que descrevem, detalham e narram passagens sobre a violência e a tortura sofridas por presos políticos dessa época, e um dos primeiros a expor e relatar o nome de seus torturadores, num ato de coragem do escritor. Caldas foi torturado e preso duas vezes durante a ditadura por participar de movimentos de oposição. Ele estudou jornalismo na antiga Faculdade Nacional de Filosofia (que depois virou a UFRJ) no início dos anos 1960. Foi ali que começou o seu interesse pela militância política e onde nasceu a amizade com o líder político Mário Alves – o primeiro preso político assassinado pelo regime militar, em janeiro de 1970, e para quem Caldas dedicou uma de suas crônicas. |
Em seu álbum de estreia solo, Dora Morelenbaum se distancia do neotropicalismo de sua banda Bala Desejo, mas sem abandonar a nostalgia. PIQUE é uma coleção de canções que misturam influências de jazz a baladas românticas, revelando uma artista que, além de segurança, já tem uma visão sobre seu caminho artístico. Filha de Jaques Morelenbaum – violoncelista, arranjador, maestro e “músico dos músicos” por excelência –. Dora parece caminhar, à diferença da maioria dos herdeiros da aristocracia musical carioca, para um território similar ao do pai: aquele em que o respeito dos pares precede o reconhecimento do público. A turnê do novo disco começou na Suécia e só desembarca no Brasil em dezembro, depois de circular por outros nove países europeus. Embora não seja inovador, o disco se distingue no cenário atual pelas escolhas artísticas e colaborações. Dora se apresenta com uma voz doce, clara e versátil – herança genética de sua mãe, Paula Morelenbaum. Ana Frango Elétrico assina a produção, enquanto Sophia Chablau, Zé Ibarra e Tom Veloso contribuem com composições. Gravado no Wolf Studio – o mesmo onde o Bala Desejo registrou seu álbum premiado com o Grammy Latino e Ana Frango Elétrico produziu seu trabalho mais recente –, o disco é bem-produzido e bem-mixado. O álbum veste uma linguagem jazzística sem perder seu caráter essencialmente cancioneiro. Venha comigo, de Sophia Chablau, tem um refrão tão imediatamente cativante que, se fosse transportado para a voz de João Gomes, poderia facilmente se converter em hit do piseiro ou embalar uma campanha publicitária para o Ceará. Já Essa confusão, parceria com Zé Ibarra, seu colega de Bala Desejo, evoca as baladas românticas mais populares de Marisa Monte e parece talhada para embalar uma próxima novela das nove. Nessa faixa, o arranjo de cordas, assinado por Dora em colaboração com o pai, transita entre o drama e a sedução com glissandos cinematográficos. |
“A natureza em Praia Vermelha é fácil de se desenhar, mas, para a criança ignorante que sou, não é fácil de se entender. Há o nível da praia e o nível da rua, onde fica a Pousada Alameda. A praia abaixo e o vilarejo acima se conectam por ladeiras, às beiras das quais ficam casas, mais pousadas, comércios, tufos de mato. Porém, em pontos mais íngremes, os dois níveis não se conectam: essa separação são as falésias âmbar presentes em postais, em pinturas e em garrafas de areia colorida.” Essas frases iniciais dão o clima de incerteza e lirismo que permeiam As Falésias – texto do escritor cearense Luciano Brito que a piauí publica na edição de novembro, e que faz parte de um romance homônimo a ser lançado em dezembro pela editora Machado. No texto, o narrador está numa viagem com sua família. O cenário é relativamente prosaico: pai, mãe, filhas e filho tentam desfrutar de uma temporada de veraneio no litoral nordestino. Contudo, em meio à paisagem atraente e ao mesmo tempo impenetrável, Brito revela mais e mais do que parece ser uma espécie de desconexão entre os viajantes. O que, de longe, pareceria uma família harmônica, de perto parece conter dissonâncias. “Meus pais estão na varanda e viram o rosto para mim quando entro, mas estão contra o sol e não posso vê-los em detalhe, só vejo que formam dois blocos escuros sob a luz.” Sem explicitar ou apelar a grandes traumas, Brito tenta captar a atmosfera de incerteza que permeia as relações familiares e a pressão da proximidade. Cidad3: Imprensa Livre!!!
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