29 novembro, 2024

Dicas culturais da revista piauí

 


Na edição de novembro da piauí , o historiador e roteirista André Boucinhas analisa o podcast Coisa que não edifica nem destrói , do humorista português Ricardo Araújo Pereira. Traçando um paralelo entre os métodos narrativos de Pereira e de Machado de Assis – em especial as técnicas usadas pelo escritor brasileiro em Memórias póstumas de Brás Cubas –, Boucinhas encontra no projeto do humorista português não apenas uma defesa incondicional do humor, mas uma série de reflexões mais densas, da importância da linguagem no humor à sua conexão inextricável com a derrota e a morte. Apesar da aparente despretensão e elipses de Pereira, Boucinhas argumenta que em seu podcast o humorista português não apenas refina o entendimento dos dilemas vividos por comediantes, como acaba por construir nada menos que uma espécie de teoria da comédia. 

Ilustração_Reinaldo_Figueiredo_2024

A participação organizada dos evangélicos na política é um fato recente da história brasileira. Os protestantes foram uma minoria reprimida nos anos do Império, quando se exigia que deputados e senadores professassem a religião oficial do Estado – o catolicismo. Na primeira metade do século XX, o pentecostalismo se popularizou, mas os evangélicos ainda formavam uma tímida minoria da população. Pastores pouco se engajavam na política. A invenção de kit-gays e outras fantasias cabia à Igreja Católica.

A paisagem só foi mudar nos anos 1980, com a redemocratização. Mais numerosas e influentes, as igrejas evangélicas passaram a investir na eleição de parlamentares – visando, num primeiro momento, participar do debate sobre a nova Constituição. Em 1987, a existência da bancada evangélica do Congresso foi noticiada pela primeira vez num grande jornal, o Correio Braziliense. Desde então, cresceu de tamanho. Havia 32 evangélicos na Assembleia Constituinte, naquele ano; em 2022, segundo o Instituto de Estudos da Religião (Iser), foram eleitos 94 na Câmara dos Deputados – 18% do total.

Esse crescimento expressivo, somado à aptidão de alguns pastores em ocupar o noticiário, talvez explique o assombro com que muitas vezes se fala da bancada evangélica. O livro-reportagem de André Ítalo Rocha, A bancada da Bíblia, contribui para dimensionar melhor o problema. Não trata os políticos evangélicos como um fenômeno pitoresco nem os superestima. O leitor sai com a impressão de que os evangélicos no Congresso não são tão numerosos nem tão unidos quanto se pensa. Têm, essencialmente, a cara do Centrão.

Rocha, que é jornalista do Valor Econômico, fez um minucioso trabalho de pesquisa e acompanhou a campanha de seis candidatos evangélicos em 2022. Registrou algumas cenas preciosas, que ajudam a explicar figuras de proa como Magno Malta e Marco Feliciano. Talvez seu grande mérito, porém, tenha sido historicizar o fenômeno evangélico no Brasil. O monstro de sete cabeças reacionário ganhou essa forma há pouco tempo e não necessariamente continuará assim. O conservadorismo é fruto da circunstância e não tanto de uma qualidade inata da religião. A história da bancada evangélica exemplifica isso bem. 

Com um repertório nada óbvio e cheio de boas surpresas, Paula Morelenbaum e Arthur Nestrovski acabam de lançar um álbum só com músicas de Tom Jobim. Morelenbaum foi uma das vozes que acompanharam o maestro nos palcos e nos estúdios de gravação por muitos anos, e é por isso que ela nos soa tão familiar quanto cristalina. Ao lado do violonista Nestrovski, a cantora participou recentemente de uma série de videoaulas ( disponíveis no YouTube da piauí ) que explicam a originalidade das composições de Jobim. Foi a partir desse projeto que nasceu o desejo de Nestrovksi e Morelenbaum produzirem juntos esse novo álbum, editado pela Biscoito Fino e disponível em todos os tocadores de áudio (na edição da piauí de novembro, Nestrovski sintetiza  num ensaio alguns dos pontos que aborda nas aulas , e que serviram de inspiração para o disco ). 

Apostando essencialmente na pureza da voz e do violão enredada pela percussão de Marcelo Costa, as dez faixas de Jobim Canção trazem o exato equilíbrio entre o frescor e a tradição da nossa música. A primeira delas, Passarim , já nos coloca no balanço e no clima ideal para apreciar o que vem depois: a clássica Wave , o belíssimo samba Piano na Mangueira (parceria de Jobim com Chico Buarque), e a eterna Gabriela , tocada por Nestrovski a quatro mãos com o violonista João Camarero, numa versão instrumental que lembra uma moda de viola, mas com gostinho da boa Bahia de Jorge Amado. Camarero, aliás, interpreta com Nestrovski outras duas faixas, e o álbum também traz uma bossinha extra: a participação de José Miguel Wisnik em um dueto com Morelenbaum em Eu não existo sem você. Apreciado junto à didática inspirada e lírica de Nestrovski em suas videoaulas, esse álbum é mais um portal de acesso à obra inesgotável de um de nossos maiores compositores, e uma dessas coisas que suscitam certo orgulho nacional. 

Em Central do Brasil, o cineasta Walter Salles (1) usa a figura de Dora, a protagonista vivida por Fernanda Montenegro, para mostrar um país tentando se reconectar consigo mesmo e se reconstruir após a ditadura, a hiperinflação e o plano Collor. Em seu mais recente filme, Ainda estou aqui, o tom muda, de modo que a nossa história é encarada como uma tragédia a ser enfrentada. No gênero da tragédia, o herói atravessa seu percurso rumo ao seu destino funesto. A heroína de Ainda estou aqui é Eunice Paiva: mãe de cinco filhos, mulher do político Rubens Paiva. O destino funesto de Eunice não se dá no exato momento em que seu marido é preso pelos militares. Ele começa a se desenhar no dia seguinte, com o luto do corpo ausente, desaparecido. E é de forma sóbria e solene que Salles nos puxa para o destino de Eunice e sua família. 

O filme apresenta o cenário da tragédia: uma casa à beira-mar onde vive uma família feliz de classe média alta. E naquele espaço improvável vem à tona aquele que é o marco fundador da nação: a violência. Eunice, como um oráculo da própria tragédia, pressente o terror ao ver um caminhão militar cruzar a orla. De repente, somem com seu marido, que tem atividades políticas discretas. E a ausência abrasiva do marido, do pai, toma o casarão, corrói tudo. Como uma névoa sinistra de maré vinda do mar. 

O grande acerto de Salles é olhar a tragédia de Eunice sob a mesma perspectiva de Nietzsche em O nascimento da tragédia . A tragédia como princípio de criação, transformação. Do luto do corpo ausente, Eunice se transmuta de uma dona de casa, mãe de família, em agonia, e, ao atravessar este fogo, sai dele um agente político, uma advogada que luta pelos direitos humanos. Eunice – e a dramaturgia de Murilo Hauser e Heitor Lorega entendem perfeitamente esse movimento – expurga o drama burguês e abraça a tragédia social e histórica que acometeu sua família. 

Outra virtude do filme é seu irrepreensível alinhamento entre todos os elementos fílmicos: direção, roteiro, interpretações, som, trilha, arte e fotografia se alinham e se entrelaçam no mesmo discurso. Aqui, puxaremos o fio da fotografia de Adrian Teijido, que demarca com brilhantismo os quatro atos do filme com o uso da luz. No primeiro ato, Tejido registra uma casa solar, muita luz entrando pelas janelas. E um Rio de Janeiro luminoso. Salles filma organicamente a crônica de verão de uma família feliz. Ruídos, música tocando, gente dançando. No segundo ato, Paiva é levado pelos militares, Eunice e a filha são presas, a crônica passa a ser do medo. A casa está encerrada, os amigos se afastam, a música cessa. Adrian Teijido traz o lusco-fusco. As janelas se fecham, a luz é indireta. 

Gradativamente a luz vai apagando. Até que o filme chega no DOI-CODI, órgão de repressão da ditadura militar. Os diálogos são econômicos. As reações de Fernanda Torres também. Salles evita um retrato histriônico, gritante e vilanesco daquele espaço. Entende que o mal é banal e burocrático, e isso deixa tudo ainda mais assustador. A luz se apaga por completo com Eunice na escuridão da solitária.

No terceiro ato, a reconstrução da vida. A luz que entra na casa é fraca, mas ela volta, pelas frestas, pelo basculante do banheiro do primeiro banho de Eunice de volta à casa. Mas a casa dos Paiva nunca mais se enche de luz, nem o Rio é mais vibrante. O terror vem pelos corpos ausentes, viver sem a figura alegre e sólida do pai, a filha que sente o cheiro do pai impregnado na camisa, a irritação agressiva que toma o caçula. E em nenhum momento o filme escorrega em um choro melodramático da protagonista. A dor está nos olhos e no silêncio de Torres. Ainda bem. No quarto ato, a família está em São Paulo. Teijido traz de volta a luz ao filme. Mas não é a luz do primeiro ato, otimista, alegre. Ilumina uma rotina e uma realidade transformada. Eunice se transmutou. E a voz de Erasmo Carlos a nos lembrar que toda tragédia precisa ser enfrentada: “É preciso dar um jeito, meu amigo.”


1. Salles é irmão do fundador da piauí