28 dezembro, 2024

Intercept Brasil

 

Sábado, 28 de dezembro de 2024

O passaporte da extrema direita

Bolsonaro não pode sair do Brasil, mas uma aliança global tirou a extrema direita brasileira das cordas.

2024 foi o ano em que a extrema direita brasileira se reconectou com o mundo. O isolamento internacional que impediu um golpe de estado liderado por Jair Bolsonaro, no final de 2022, já não existe mais – e isso não se deve apenas à eleição de Donald Trump, nos Estados Unidos, ou ao primeiro ano do mandato de Javier Milei, na Argentina.


Mesmo acuado pelos indiciamentos determinadosa pela Polícia Federal, o bolsonarismo não perdeu fôlego. Pelo contrário: se fortaleceu, encontrou novos aliados fora do país e reafirmou seu caráter transnacional. Enquanto isso, nas eleições municipais, viu a esquerda sofrer uma derrota histórica e abriu caminhos e palanques para tentar retomar o poder em 2026.


Em fevereiro, é verdade, o cenário ainda era outro. Naquele mês, uma operação da PF apreendeu o passaporte de Bolsonaro. Em março, veio o primeiro indiciamento, em função da fraude no cartão de vacinação. Dias depois, uma reportagem em que colaborei revelou imagens do ex-presidente escondido na Embaixada da Hungria.


Mas, no início do segundo trimestre, a folia de quem acreditava no bordão “sem anistia” foi diminuindo. Para não melindrar as Forças Armadas, qualquer menção, homenagem ou evento do governo federal ao aniversário de 60 anos do golpe de 1964 foi cancelada, por determinação expressa do presidente Lula.


Preferia que fosse mentira, mas não é: em 1º de abril, contei aqui no Intercept Brasil que o cancelamento das solenidades sobre o golpe militar foi tão atabalhoado que fez o governo perder dinheiro. Sim, o Ministério dos Direitos Humanos já tinha alocado R$ 200 mil para celebrar a data – até que Lula ordenasse o silêncio como política.


Naquele mesmo abril, outro fato que parece irreal: o bilionário Elon Musk resolveu dedicar dias inteiros a atacar ferozmente o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal. Para tal, contou com a publicação dos Twitter Files e de decisões sigilosas do STF por um comitê da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos.


Isso fez com que eu publicasse outras duas reportagens: uma delas, revelando que um dos perfis supostamente censurados pelo STF se chamava Era Fascista – ou seja, que deputados do Brasil e dos EUA estavam defendendo esse tipo de gente; a outra foi que os tais censurados já tinham voltado às redes e cresciam surfando no discurso da censura.





Vale dizer que o tal ataque à liberdade de expressão no Brasil não foi só bandeira do X, o ex-Twitter, de Elon Musk. Outras grandes empresas de tecnologia, as big techs, como a Meta e o Google, amplificaram a tese de perseguição política e fortaleceram as bases digitais do bolsonarismo contra qualquer tipo de regulação das redes sociais.


Na Argentina, o primeiro ano de mandato de Javier Milei também simbolizou um novo fôlego para a direita radical e a extrema direita brasileira. O exemplo argentino se somou ao de Viktor Orbán, na Hungria, e Nayib Bukele, em El Salvador, como inspiração para o bolsonarismo – que também conta os dias para a posse de Trump.


A ascensão dessas figuras no cenário global também assanhou e deu nova força a outros atores, como o Movimento Brasil Livre, o MBL, e a produtora Brasil Paralelo. Esses dois grupos, por sinal, tiveram um grande ano – manchado por algumas reportagens nossas, é verdade.


O movimento de Kataguiri e Mamãe Falei mandou militantes para visitar El Salvador e se aproxima de criar um partido – mas, como revelamos em uma reportagem, usam métodos questionáveis para chegar lá. Já a produtora é alvo de ação no Ministério Público Federal por nossa causa: expusemos seu perigoso plano de espalhar negacionismo nas escolas brasileiras.


Outro marco nesse circuito foi a participação de Jordan Peterson, psicólogo canadense, em um evento da Brasil Paralelo com a presença de Cristina Junqueira, cofundadora do Nubank. O caso deu repercussão nacional a uma investigação que publiquei dias antes: o banco acobertou um ex-funcionário que, hoje, é diretor da Brasil Paralelo.


Em agosto, outra história nos alçou ao debate sobre a transnacionalidade da extrema direita: nas Olimpíadas de Paris, revelei aqui no Intercept que um funcionário da transmissão oficial repetia sinais associados à alt-right. Por lá, o caso levou à demissão sumária. Por aqui, um assessor de Bolsonaro demorou mais de três anos para ser condenado.


Por incrível que pareça, a eleição municipal também nos fez sair do Brasil. A reportagem que fiz em parceria com o jornalista angolano Cláudio Silva desmascarou a farsa das "300 casas construídas" pelo coach Pablo Marçal na África e, mais que isso, revelou os controversos planos da Igreja Lagoinha, da família Valadão, no continente.


Como argumentam os pesquisadores David Magalhães e Odilon Caldeira Neto neste interessante artigo, as conexões globais da direita radical e da extrema direita não são novidade no Brasil. Desde o integralismo no século 20, grupos formados por brasileiros desenvolveram redes com movimentos fascistas europeus, como o corporativismo italiano.


Mais recentemente, o bolsonarismo tem colocado grande peso em organizações e eventos como o Foro de Madrid e a CPAC. Isso, é claro, tem um custo financeiro. Temos algumas pistas de onde sai o dinheiro. Em maio, por exemplo, publiquei essa reportagem revelando que o fundo partidário do PL estava sendo usado para remunerar um dos organizadores da versão brasileira do CPAC.


Portanto, que fique claro, essa aliança internacional não começou em 2024 — e ainda precisa ser devidamente investigada.


Mas, sim, podemos dizer que o ano em que Bolsonaro teve o seu passaporte apreendido foi exatamente o mesmo em que a extrema direita brasileira tirou um passaporte novinho – e vai usá-lo como panfleto de campanha daqui até 2026.

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