10 janeiro, 2014

Xangô da Mangueira = Ensaio



Olivério Ferreira, de nome artístico Xangô da Mangueira (Rio de Janeiro19 de janeiro de 1923 - Rio de Janeiro, 7 de janeiro de 2009) foi um sambista, cantor e compositor brasileiro.1
Xangô da Mangueira iniciou-se no samba na escola de samba União de Rocha Miranda, transferindo-se posteriormente para a Portela, onde foi discípulo do célebre Paulo da Portela. Após a saída de Paulo da escola, no início da década de 1940, Xangô seguiu Paulo por um tempo na Lira do Amor, porém, como também admirava a Mangueira, pediu permissão a seu mestre, sendo por ele indicado a diretoria mangueirense, onde Paulo da Portela também possuía grandes amigos. Na Mangueira, Xangô permaneceu pelo resto da vida, notabilizando-se como diretor de harmonia, cargo que ocupou por várias décadas. Foi também o intérprete oficial do samba da escola até 1951, sendo antecessor de Jamelão.2 Na década de 1970, gravou quatro LPs pela gravadora Tapecar e desenvolveu extensa atividade artística, apresentando-se como cantor em todo o Brasil e no exterior. Como compositor, teve diversas obras gravadas por cantores como Clara Nunes e Roberto Ribeiro.
Faleceu aos 85 anos, no Hospital do Irajá, vítima de problemas cardíacos sendo velado e enterrado no cemitério do Cajú.



Se houvesse uma história social do samba, feita a partir de quem o vivencia e aprecia, aprenderíamos que existem dois tipos de sambistas: os cultores e os estilistas. Os cultores são músicos, cantores e poetas de enorme capacidade criativa que aprimoram a arte de compor e cantar samba. Já os estilistas são aqueles que simplesmente criam sua própria forma, única e original, de samba. Existem cultores que são até mais famosos que os estilistas, mas são os últimos que mantém a chama da inovação e comprovam a riqueza rítmica e melódica do samba. Xangô da Mangueira é o maior dos estilistas do samba em atividade e conversar com ele foi como fazer um passeio por partes conhecidas de nossa própria história que, estranhamente, somos forçados a esquecer. Foi também um enorme prazer e um ato de generosidade de um artista singular.

A idéia de estrear nossa nova editoria com Xangô vem do fato dele ser o melhor sambista desconhecido de sua geração. 

Um desconhecimento que é, obviamente, relativo. Embora tenha uma obra comparável a de personagens como Cartola e Nelson Cavaquinho, ele ainda não penetrou naqueles círculos de admiração nos quais artistas populares são "descobertos" por setores intelectuais de classe média, embora seu trabalho seja, há muito, reconhecido por seus pares e pelo público "não-formador" de opinião. A carreira em disco, iniciada nos anos 70, nunca foi tão bem-sucedida quanto, por exemplo, a de Martinho da Vila, cuja influência de Xangô é visível em vários sambas e calangos. Mesmo não tendo o devido reconhecimento, a obra musical de Xangô reúne cerca de 150 composições, muitas gravadas por ele mesmo em um compacto e em 4 lps lançados somente em vinil nos anos 70 e começo dos anos 80. Além de seus próprios discos, existem ainda as várias participações em coletâneas e tributos a outros artistas.

O estilo único de Xangô é a soma de vários talentos e fruto de várias vivências que se apresentam à medida em que conversamos. O talento mais aparente é o de cantor. A voz poderosa, que atraiu a atenção de Paulo da Portela, tem peso e sotaques ancestrais. A associação mais óbvia é com Clementina de Jesus, com quem dividiu palcos em uma turnê do antigo Projeto Pixinguinha. Por alguma razão misteriosa, os organizadores do projeto consideraram que ouvir Xangô e Clementina juntos deveria ser um privilégio apenas dos nordestinos, pois a turnê do show da dupla se limitou às capitais daquela região. O talento de compositor aparece nos sambas que misturam ritmos e personagens interioranos com uma picardia de sabor suburbano. A simplicidade dos versos estruturados em refrões, primeiras, refrões e segundas capturam o ouvinte em um universo de lavadeiras, pastoras, malandros, velhos batuqueiros e muitas rodas de samba.

Outro talento fundamental é o que o próprio Xangô chama de improvisador, uma atividade que só era possível quando as escolas de samba funcionavam realmente como escolas. O talento como improvisador levou-o a se identificar com o partido-alto, que se tornaria popular nos anos 70. "Eu achava bonito o partido alto", comenta Xangô, "quando os antigos formavam aquela roda e ficavam ali horas e horas cantando aqueles partidos e versando, os compadres com as comadres, uma coisa bonita mesmo". A maestria adquirida no partido-alto lhe valeu o título que dá nome ao seu primeiro lp, "O Rei do Partido Alto" (1972), seu álbum preferido. 

Nascido no Rio Comprido, bairro do Rio de Janeiro, Xangô passou a infância em um sítio em Paracambi, munícípio da Baixada Fluminense que, naquela época, poderia ser classificado como uma área de fronteira de expansão da antiga Guanabara. Daí, de sua mãe mineira (de Ubá) e de seu pai paulista (de Campinas), vieram o sotaque, o vocabulário e a inspiração em ritmos do interior. Adolescente, Xangô viveria em vários bairros do Rio de Janeiro (Rocha Miranda, Sampaio, Irajá, Pavuna), lugares que marcam a identidade de um tipo especial de carioca, o suburbano, que só merece alguma apreciação durante o Carnaval. Parte da genialidade do samba de Xangô está na forma como mistura ritmos populares distintos. A infância interiorana e a vida nos bairros da classe
trabalhadora da Rio consolidaram uma conexão distinta do clichê campo-cidade. Xangô une à roça ao subúrbio em sambas que falam línguas diversas mas mantém um espírito em comum ao estimular à participação com suas palmas e coros cadenciados.

Como Xangô destaca, "antigamente, não havia a segunda do samba". Foi improvisando, então, que ele começou a fazer música e a conviver com as escolas de samba. A carreira em disco, segundo ele, "só viria depois de um longo aprendizado". As primeira lições foram na Unidos de Rocha Miranda, onde foi aluno de Lilico, em algum período no começo dos anos 40 (as datas não vem claramente à sua memória). "Nesta época, eu via Cartola e Paulo da Portela no jornal e sonhava em ser como eles". Xangô também recorda que de um bom improvisador exigia-se bom ouvido, boa cabeça para versar, e a habilidade de "entrar no ritmo e na melodia e deixar o outro em boas condições".

Da escola de Rocha Miranda, Xangô foi convidado para desfilar em uma ala da Portela. É Xangô quem conta, com evidente orgulho, a reação do mítico Paulo da Portela, à sua voz, "Poxa, menino, você tem uma voz boa, deve aproveitar isto". Esta foi a deixa para que Xangô passasse alguns anos na tradicional escola de samba de Madureira, "improvisando com os grandes", como ele diz. Quando Paulo da Portela deixou a escola para atuar na Lira do Amor, Xangô o acompanhou como uma deferência especial. Mas a aventura da Lira do Amor não durou muito e Xangô pediria permissão ao professor para improvisar em outra agremiação.

"Mestre", disse Xangô, "estou com a idéia de ir para uma escola que admiro. Eu quero ir para a Mangueira". Paulo da Portela responderia, "Olha, a casa é sua lá porque eu tenho grande amizade, grande intimidade com o Cartola. Se você precisa de uma referência, eu estou aí para dar para você".

Além da referência ilustre, Xangô também já tinha achado seu caminho para a Estação Primeira por seus próprios meios. Nos bailes como o da Banda Portugal em clubes da Pavuna e do Irajá (os bailes eram uma variação das gafieiras da Praça XI), Xangô faria amizades com moradores da Mangueira que o apresentariam à direção da escola. Nem a referência ilustre, nem as novas amizades, no entanto, o livraram de ter que provar suas habilidades em um concurso onde teve que improvisar e versar em dupla com outros candidatos. Xangô relembra que deveria haver umas 10 duplas concorrendo naquele dia. Ele não só ganhou o concurso, com a auxílio de um parceiro com quem teve uma empatia imediata, como ainda foi escolhido 3° diretor de harmonia da escola.

A função não somente indicava que ele havia pulado vários degraus na hierarquia da Mangueira, mas também ajudaria a celebrizar sua presença no mundo do samba. Xangô fala do dia-a-dia na quadra da Mangueira em mais de meio século de atividade na função, "Eu adaptava as pessoas novas que chegavam para que eles entendessem o espírito da coisa". Xangô tornou-se conhecido pela paciência e cortesia. "Nunca xinguei uma pastora ou discuti com ninguém. Entro na quadra na hora em que o ensaio começa, e todos param de falar. Se tem alguma confusão, explico que todos têm que colaborar porque isto aqui é a diversão nossa. É a arena, o teatro da pessoa humilde".

A função inspiraria o seu parceiro mais freqüente, Jorge Zagaia, a escrever um dos mais belos versos da história do samba no partido-alto "Diretor de Harmonia", que ambos dividem no primeiro lp de Xangô. 'Sou eu o diretor de harmonia/aviso para entrar a bateria/sou eu quem manda o mestre-de-sala/se apresentar a porta-bandeira Maria/se estou errado me perdoa/eu sou o samba em pessoa/você já pensou/quando a velhice chegar/e eu não puder mais sambar'.

Ao entrar para a Mangueira, Xangô adicionaria o complemento nobre ao apelido que ganhou ainda na adolescência. Morando em Rocha Miranda, Xangô foi levado por amigos para trabalhar na fábrica de tecidos Nova América, no subúrbio de Del Castilho. "Naquela época, os garotos brincavam de apostar corrida com carrinhos de madeira. Os ingleses malandros logo viram que era melhor botar os garotos para trabalhar em vez dos velhos que não iam produzir tanto", ele relembra. Xangô foi então trabalhar na máquina de rolo e logo ficou conhecido como o engraçadinho que botava apelidos em todo o mundo, "Olhava para a cara do caboclo e dizia: Carranco! Jamelão! Chupeta!". Mas o próprio Xangô não tinha um apelido e um novo empregado iria alterar este fato com uma provocação simples. Xangô avisou ao novato que ele iria ganhar um apelido, porque todos ali tinham um, e sem perder tempo decretou, "Você tem cara de macumba, você vai ser o Macumba". O novato Macumba concordou, "Não tem nada, pode botar", mas acrescentou, "Qual é o seu apelido?". Xangô apenas respondeu, "Eu não tenho apelido", ao que Macumba replicou de imediato, "Não tinha! Se eu sou o Macumba, você vai ser o Xangô!".

As reminiscências de Xangô sobre os desfiles da Mangueira, onde morou por vários anos, são como preciosas crônicas de uma cultura que parece perder essência à medida em que ganha brilho e holofotes. Xangô conta com evidente saudosismo sobre os dois sambas-enredos, um de entrada e outro de saída, que toda escola escolhia para o desfile principal, e da função do diretor de harmonia de narrar o desfile para a comissão julgadora no alto do palanque em que esta se colocava. A excelência de uma escola e a perícia de seus membros eram medidas no momento da parada, quando a escola trocava de sambas. "Se errasse, era logo desclassificada", ele observa. Quando os desfiles não eram oficiais, Xangô conta como os membros da escola tinham que proteger a sua porta-bandeira contra os ataques de outras escolas. Explica-se: se fosse deixada sem proteção, a porta-bandeira de uma escola poderia ser gentilmente "raptada" por outro mestre-sala que não o seu par para ser exibida em outra agremiação. Cabia então ao descuidado mestre-sala original aceitar o duelo, indo em busca da parceira na escola "inimiga" para trazê-la de volta ao grupo original. 

Tais histórias foram vividas por Xangô ao longo de décadas no mundo do samba. Mas Xangô, como muitos outros sambistas da sua época, nunca viveu do samba. Aposentado como funcionário público federal, ele exerceu ao longo da vida as funções de operário, estivador, segurança e agente federal. Em certos períodos, ele acumulava dois empregos. Trabalhava como segurança em regime de plantão, mas tirava as folgas no cais do porto do Rio de Janeiro. O trabalho, no entanto, não o impediu de viajar com grupos da Mangueira por vários países da Europa e de comprovar como o samba brasileiro encanta as platéias de todo o lugar, incluindo os japoneses, que Xangô visitou antes mesmo deles se tornarem uma espécie de gravadora alternativa para sambistas que sequer sonham em gravar um disco no Brasil.

Ao longo de nossa conversa, Xangô também deixou claro que um improvisador não se faz sozinho. Foi esta apreciação pelo trabalho dos parceiros que transformou os discos de Xangô em trabalhos quase coletivos. Seus parceiros compõem e cantam com ele em várias faixas. Muitos deles, Jorge Zagaia, Waldomiro do Candomblé, Babaú da Mangueira, Aniceto do Império, são também artistas excepcionais. Em seu último lp solo, "Xangô Chão da Mangueira" (1982), um destes "parceiros" aparece com destaque especial. Dona Ivone Lara, levada para o mundo dos shows e das gravações pelo próprio Xangô, compôs para ele uma de suas músicas mais inspiradas ("é a sua cara", ela disse a Xangô ao entregar a música). "A Festa de Santo Antônio", uma ladainha com cadência de samba e versos que subvertem um hierárquico sincretismo religioso, é provavelmente a melhor interpretação de Xangô em disco.

Os dias atuais de Xangô são passados ao lado da esposa, Sonia, que organiza um impressionante acervo de recortes, troféus e memorabilia, em seu apartamento no Irajá. Além do museu particular, que ocupa um quarto inteiro do apartamento, Xangô também tem um altar budista em sua casa. O diretor de harmonia ainda cumpre suas funções na Mangueira e participa das atividades, agora mais intensas, da Velha Guarda da escola. Sobre o ressurgimento das velhas guardas, Xangô é cuidadoso. "O sujeito comprou a corda, carregou os instrumentos, organizou os desfiles, e agora gente que não tem idade para ser da Velha Guarda quer explorar os velhinhos. A Velha Guarda tem que ter o olho vivo porque tem muito material, muitas músicas, que eles nunca mexeram e hoje é hora de eles botarem para fora".

Por seu talento e pela convivência com outros personagens ilustres do samba carioca, Xangô da Mangueira poderia pedir filiação à mais de uma velha guarda, idéia que parece nunca ter passado por sua cabeça. Mas é isto o que passa pela cabeça de quem ouve o samba, outra parceria sua com Jorge Zagaia, que Xangô canta no recente CD da Velha Guarda da Mangueira, "Eu encontrei no Carnaval que passou/aquela que foi o meu grande amor/como estava bela/fantasiada com as cores da Portela/eu não pude resistir e chamei por ela/ela não quis me ouvir/a minha divergência com ela/é que eu sou Mangueira e ela é Portela".

Para nós, que tivemos o privilégio de ouvi-lo cantar esta música em seu pequeno museu particular, é quase impossível não pensar que no coração verde-e-rosa de Xangô corre um pouco de sangue azul-e-branco.

Fontes: Revista Afirma e Musicaria Brasil