(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 13 de outubro de 1998)
Finalmente o Nobel descobriu que existe a língua portuguesa. Pelo menos, a primeira escolha foi feliz. Já no ano passado, José Saramago era o favorito, entretanto ridiculamente escolheram Dario Fo, após deixar que morressem quase todos os maiores ficcionistas italianos do século: Italo Svevo, Carlo Emilio Gadda, Leonardo Sciascia, Dino Buzatti, Italo Calvino, Alberto Moravia, Elsa Morante, Cesare Pavese, para citar os mais óbvios, sem premiá-los.
Além de sua obra como dramaturgo (In nomine Dei; Que farei com este livro?), poeta, contista (Objecto quase), observador da “realidade” (A bagagem do viajante; Viagem a Portugal) e auto-cronista (nos dispensáveis e desagradáveis Cadernos de Lanzarote), o prolífico e notável primeiro autor nobelizado da nossa língua vem destacando-se, desde o início da década de 1980 como romancista, um dos maiores da atualidade.
Levantado do chão (1980) já prefigura, ao que parece, o grande Saramago. A explosão acontece com Memorial do convento (1982), para muitos o seu melhor romance e que já tem o status de clássico, adotado inclusive por vestibulares.
Nessa obra extraordinária, Saramago realizou um feito de concepção e de linguagem, feito que se repetiu no romance seguinte, O ano da morte de Ricardo Reis (84), no qual imagina o heterônimo mais conservador de Fernando Pessoa sobrevivendo ao seu criador e voltando a Portugal, justamente quando os países europeus estão sendo dominados pelo fascismo. Dos livros de Saramago, esse (que eu li em primeiro lugar) é ainda o meu favorito, o mais rico, aquele em que os seus recursos narrativos se casaram melhor. Logo nas primeiras páginas, o leitor encontra uma homenagem a Jorge Luis Borges, pois uma das leituras de Reis no navio que o leva à pátria é um livro de Herbert Quain, criação do grande escritor argentino; assim, o jogo de espelhos das autorias se adensa e ao mesmo tempo se amplifica.
Em compensação, são artificiosos e forçados demais A jangada de pedra (1986) e História do cerco de Lisboa (1989). A idéia que norteia o primeiro é genial (a Península Ibérica aparta-se geologicamente da Europa e fica à deriva) e o livro é importante porque dá o primeiro passo para um desenvolvimento posterior de sua obra romanesca (uma situação alegórica inicial que se espraia pela narrativa toda), mas História do cerco de Lisboa parece concentrar o que de pior podemos dizer da obra saramaguiana, se não gostamos dela: certa tendência à monocórdia, à monotonia mesmo, um humor forçado e sisudo (se se aceitar a contradição de termos), e sobretudo uma aridez cortante.
Não é à toa que muitos consideram o livro praticamente ilegível. Não é o caso, evidentemente, porque nada do que José Saramago escreve como ficção pode ser descartado muito facilmente; aliás, agora, depois do Nobel, ou pelo menos daqui a algum tempo, a revisão de suas obras será natural e muitos juízos serão refeitos.
O vigor retornaria com o soberbo O evangelho segundo Jesus Cristo (1991), a maior requisição contra Deus que já se fez num romance. Não é improvável que no curso dos próximos anos esse livro venha a se estabelecer como o ponto alto de toda a produção ficcional de José Saramago. Nunca é demais lembrar que ele fez milagres (se é que se pode usar uma palavra pela qual ele parece ter aversão) com um assunto tão batido.
Se Memorial do convento e O evangelho segundo Jesus Cristo demonstraram ser os livros mais prestigiados do Nobel de 1998, permitam-me uma impertinência: mesmo com toda a sua grandeza, eu admiro mais os dois últimos romances, que trabalham com uma situação ao mesmo tempo alegórica e contemporânea, tal como A jangada de pedra prenunciava. São eles Ensaio sobre a cegueira (1995) e Todos os nomes (1997). Talvez não tenham o virtuosismo dos outros, mas, resgatando mitos, pensando a situação atual, discutindo barbárie e civilização, caos e ordem, pessimismo e esperança, são obras emocionantes, candentes, memoráveis, que fazem pensar em autores como Albert Camus, Thomas Mann ou Doris Lessing, que exercitaram a difícil arte de persistir no humanismo, mesmo com toda a reprovação da vanguarda e do engajamento político mais evidente. Apressadamente declarou-se que a obra dos dois primeiros caducara e hoje percebe-se que estão mais vivos do que nunca. Mais próximo de Mann do que de Kafka, o objetivo de Todos os nomes e especialmente Ensaio sobre a cegueira, a meu ver, é mostrar horrores e situações-limite não de forma a reiterar o absurdo da existência e a desesperança, e sim, de forma a transformar a literatura numa experiênciapedagógica (palavra tão ao gosto do autor de A montanha mágica, mas que não causaria estranheza aos autores de A peste e Shikasta).Ou seja, o ser humano precisa aprender.
Apesar da constrangedora vaidade que desnorteia o leitor dos Cadernos de Lanzarote é esse aspecto da obra de José Saramago que o torna proeminente (no sentido de um entrelaçamento do fazer literário com uma postura ética), mesmo em meio a seus pares igualmente merecedores do Nobel, nessa literatura tão ignorada no Brasil como é a de Portugal: Agustina Bessa-Luís, José Cardoso Pires, António Lobo Antunes e Eugênio Andrade, já que o grande Vergílio Ferreira já se foi.
Há outro aspecto digno de se destacar do prêmio deste ano: foi dado a um escritor que ainda está produzindo, que ainda está no melhor da sua forma; em suma, que ainda está vivo, no sentido amplo da palavra. Sabemos que nem sempre foi assim nas premiações do Nobel.
Atenção- Todos os livros de Saramago destacados nesta resenha estão publicados no Brasil e acessíveis. Com exceção de Memorial do Convento e Levantado do chão, publicados pela Difel-Bertrand Brasil, todos os demais foram lançados pela Companhia das Letras.
nota de 2013- Curiosamente, todos eles (Mann, Camus, Lessing e Saramago) foram distinguidos com o Nobel.
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