26 dezembro, 2012

CORPO ILUMINADO: CACILDA BECKER E O TEATRO MODERNO


       Atrizes de teatro e de cinema são diferentes. Uma avaliação sucinta dos mais importantes aspectos dessa diferença é essencial para entendermos o desempenho da atriz brasileira Cacilda Becker, apontado como extraordinário. O objetivo da análise é duplo: entender as razões que alçaram a competência dessa atriz ao nível extremo e relacionar sua elogiada atuação nos palcos à renovação que ocorria no teatro brasileiro e ao prestígio conquistado também por outras intérpretes teatrais ao longo dos decênios de 1940 e 1950.

Heloísa Pontes

Para os aficionados pelas artes da representação, a sueca Greta Garbo (1905-1990) e a francesa Sarah Bernhardt (1844-1923) são nomes obrigatórios. A primeira pelo glamour que infundiu à ‘sétima arte’.

A segunda pelo que fez nos palcos e fora deles. Divas cuja notoriedade é inseparável dos meios com que se expressaram e das personagens que interpretaram. A primeira ganhou fama no cinema, a segunda fez nome no teatro. Disso decorrem implicações intrigantes, como a diferença entre as personagens teatrais e cinematográficas.

Greta Garbo marcou o imaginário de milhões de fãs em virtude de sua ‘inacessibilidade’ quase mítica. Ao contrário dos grandes atores e atrizes de teatro, que oferecem o melhor de si quando interpretam personagens marcantes da dramaturgia ocidental, Garbo, embora tenha ‘emprestado’ seu corpo para inúmeras personagens femininas, interpretou antes de tudo a si mesma, ou melhor, à persona que se construiu em torno dela. Por isso, o que persiste dela não é propriamente a atriz, “mas essa personagem de ficção cujas raízes sociológicas são muito mais poderosas do que apura emanação dramática”, como mostrou o crítico de cinema Paulo Emílio Salles Gomes (1916-1977) no livro A personagem de ficção.

A menção a Greta Garbo visa realçar uma das mais notáveis diferenças entre o cinema e o teatro quando o assunto é a personagem interpretada. Se em ambos as personagens são ‘encarnadas’ na pessoa e no corpo dos intérpretes, ocorre que, no cinema e nas palavras de Paulo Emílio Gomes, “os mais típicos atores e atrizes são sempre sensivelmente iguais a si mesmos”, pois “em última análise simbolizam e exprimem um sentimento coletivo”. Além disso, os filmes podem ser vistos novamente, o que assegura uma espécie de imortalidade aos intérpretes. No teatro, ao contrário, atores e atrizes estão sujeitos aos ‘infortúnios’ da temporalidade. “Quando um ator para o ato teatral, nada fica, a não ser a memória de quem o viu”, na opinião daquela que é considerada a maior atriz viva do teatro brasileiro, Fernanda Montenegro.

O fato de serem retratados na pintura e de receberem um registro visual preciso a partir da invenção da fotografia não minimiza as imposições da fugacidade a que os atores e as atrizes de teatro estão sujeitos por praticarem uma arte que deixa poucas provas materiais de sua existência. Enquanto o texto teatral pode ser consultado séculos depois da primeira encenação, uma montagem específica só sobrevive no testemunho dos que estiveram presentes, nos programas impressos, nas críticas publicadas. Mesmo quando filmada integralmente, ela torna-se outra coisa. Parte importante do ‘mistério’ e da ‘magia’ – para usar uma terminologia nativa do teatro se perde ao ser reproduzida em filme, pois este não é capaz de transmitir aquilo que acontece ao vivo e que depende essencialmente da capacidade de interpretação dos atores e do modo como isso é captado pelo público.

Um ótimo exemplo nesse sentido está na avaliação que o diretor belga radicado no Brasil Maurice Vaneau (1926-2007) fez sobre o impacto e a força expressiva de uma das mais emblemáticas atrizes do teatro brasileiro, Cacilda Becker (1921-1969).

Cacilda Becker

Comparando-a com as grandes atrizes do mundo, Vaneau enfatiza: “Ela tinha um talento de dimensão extraordinária. Quando estava no palco, ocupava-o por inteiro, projetando para toda a plateia (não somente para as duas primeiras fileiras) todos os sentimentos que precisariam ser traduzidos a partir da personagem que estava representando [...]. 

Cacilda tinha esse fluido imenso, emanando ondas, circulando ondas do palco para a plateia, da plateia para o palco e vice-versa, num sistema que é básico para o teatro, porque esse fluido é capaz de tocar o intelecto, o coração, o estômago, os nervos, as artérias e o sangue do espectador”. Transitando por personagens muito distintas, Cacilda triunfou porque elevou sua competência como atriz a um nível excepcional, em um contexto muito particular de renovação do teatro brasileiro. 

Ela pertence ao time seleto das grandes atrizes que, fazendo de seus corpos o suporte privilegiado para a reconstrução de experiências alheias, dominam as convenções teatrais a ponto de burlar constrangimentos sociais de classe, gênero e idade, infundindo às personagens uma pletora de significados novos e inesperados. Eis aí a grande diferença entre a atriz de cinema e a de teatro: enquanto a primeira é tida como ‘grande’ quando se revela sempre igual a si mesma, no teatro a notoriedade nasce da capacidade de encarnar as mais diversas personagens.

Autoridade Artística

Arte essencialmente espacial, o espetáculo dramatúrgico é criador e dependente de convenções teatrais – para usar uma noção desenvolvida pelo crítico e novelista britânico Raymond Williams (1921-1988) – decorrentes a um só tempo de exigências espaciais e valores culturais. Por isso, essas convenções não podem ser apreendidas apenas em termos estéticos e devem ser analisadas nos contextos teatrais particulares. Assim, encerramos a comparação entre as personagens no teatro e no cinema para nos concentrar na história do teatro brasileiro, com o objetivo de entender as razões que levaram algumas intérpretes a conquistarem tamanho prestígio ao longo das décadas de 1940 e 1950.

Época em que, no dizer de uma delas, a atriz Maria Della Costa, “as mulheres mandavam no teatro”. Experiência bastante distinta daquela que elas próprias teriam quando passaram a atuar também na televisão, o que permitiu a muitas delas a ampliação da fama, mas não necessariamente a autoridade artística. Diferente ainda da experiência das atrizes que as sucederam em termos geracionais – por exemplo, Dina Sfat (1938-1989).

Esta estreou em 1962, como atriz amadora, e projetou-se na cena teatral paulista no ano seguinte, quando passou a integrar o Teatro de Arena. Reconhecida como atriz de teatro, televisão e cinema, Dina Sfat, que – como Cacilda Becker – morreu no auge da carreira, lamentava-se por ter “desperdiçado sua fotogenia no cinema”. Nas palavras da atriz, transcritas no livro Dina Sfat: palmas pra que te quero: “Eu poderia ter feito grandes filmes e grandes personagens. Mas esses grandes filmes e grandes personagens não aconteceram na minha geração.

Os filmes eram feitos, quase sempre, para personagens masculinos. O Cinema Novo era todo voltado para o homem, as mulheres funcionavam como enfeite de bolo. (...) Os exemplos são vários e incluem os filmes de Glauber Rocha. Ele mesmo dizia – com a maior graça, mas com total franqueza – que o mundo tem o lado masculino e o lado negativo. As mulheres fizeram cinema e teatro, sim: Maria Della Costa, Fernanda Montenegro, Cacilda Becker, Natália Thimberg, Tônia Carrero, todas ativíssimas. Mas no teatro do meu tempo, dos meus 20 anos [referência ao teatro dos anos de 1960], que seria o Teatro de Arena, era assim: Gianfresco Guarnieri e nós, mulheres, o complemento, a massa”. A leitura em conjunto dos depoimentos de Maria Della Costa e de Dina Sfat ajuda a situar a questão da autoridade artística.

Mas não esgota a questão, uma vez que a importância (ou não) das mulheres no teatro e o renome conquistado só podem ser explicados à luz das convenções teatrais e de gênero). Pois, como é sabido, no Brasil (mas não só aqui) e por muito tempo, as atrizes de teatro foram associadas às prostitutas e o teatro de extração popular às casas noturnas de reputação e gosto ‘duvidosos’. A alteração dessa percepção decorreu da importância e do prestígio que as atrizes conquistaram na cena teatral a partir dos anos de 1940.

Cacilda Becker como o menino Pega-Fogo, na peça de Jules Renard, encenada pelo Teatro Brasileiro de Comédia em 1950

Essa transformação é inseparável, por um lado, da origem social mais elevada dos amadores e dos grupos que eles criaram no período. Entre esses grupos estão o Grupo Universitário de Teatro, o Grupo de Teatro Experimental, o Teatro do Estudante, Os Comediantes – o último é responsável pela encenação de Vestido de noiva, de Nelson Rodrigues (1912-1980), peça tida por todos e desde a sua estreia no Rio de Janeiro, em 1943, como o marco zero do moderno teatro brasileiro.

Por outro lado, não pode ser separada dos projetos que implicaram na profissionalização da atividade teatral, como o Teatro Brasileiro de Comédia, fundado em 1948 e frequentado por um público de extração burguesa. Símbolo do teatro paulista na época, ele contribuiu ativamente na implantação e na sedimentação das rotinas de trabalho do teatro moderno. Entre elas, o respeito ao texto, a eliminação dos ‘cacos’ (falas improvisadas em cena), os espetáculos bem montados, a presença obrigatória do diretor, os ensaios prolongados, a disciplina dos intérpretes.

Trabalho Infernal

Reconhecida como a maior atriz do teatro paulista, Cacilda Becker converteu seu corpo em suporte de experiências alheias – distantes de sua vivência pessoal. Nessa ‘incorporação’, imprimiu às personagens verossimilhança e verdade renovadas. Nem bonita nem bem formada, em razão da origem social e da precária escolarização, ela se aprimorou como atriz com a ajuda dos diretores estrangeiros que vieram para o Brasil, fugindo da Segunda Guerra Mundial ou das condições pouco animadoras de trabalho no pós-guerra europeu.

Com eles, Cacilda supriu as deficiências de sua formação, driblou os atributos físicos menos favoráveis, familiarizou-se e dominou as convenções teatrais que fizeram do Teatro Brasileiro de Comédia o modelo por excelência de companhia até meados dos anos de 1950.

Ao ser contratado para dirigir a companhia, em 1949, o italiano Adolfo Celi (1922-1986) encontrou em Cacilda Becker a atriz ideal. Profissional impecável, pontual e disciplinada, ela era a primeira a chegar e a última a sair do teatro. Entregava-se totalmente ao papel que estava fazendo e amava repetir as falas até a exaustão. Nas palavras do polonês Zbigniew Ziembinski (1908-1978), diretor com quem mais trabalhou em sua carreira (ele a dirigiu em 10 peças), um dos ‘motes’ de Cacilda, quando recebia a proposta de um novo espetáculo, era: “Vamos trabalhar! Vamos ter um trabalho infernal!”.

Ziembinski (em depoimento no livro Uma atriz: Cacilda Becker, organizado por Maria Thereza Vargas e Nanci Fernandes) diz que, para ela, “trabalho infernal era fonte de alegria, de necessidade de esforço extremo”. “No calor do trabalho, da luta para conquistar novos valores, ela se sentia renascer, ao mesmo tempo em que o corpo frágil se transformava em corpo de gigante, um corpo iluminado”, completa. Foi esse corpo que possibilitou a ela interpretar personagens muito distintas, da rainha escocesa Mary Stuart ao menino Pega-Fogo, protagonista da peça do mesmo nome (Poil de carotte, no original), do escritor francês Jules Renard (1864-1910).

Não só em virtude dos aparatos externos que ela mobilizava para dar verossimilhança às personagens encenadas – o traje majestoso com que se paramentava de rainha ou o esparadrapo com que apertava os seios debaixo da camisa para tornar mais crível sua representação de menino. Mas, sobretudo, pela capacidade de converter a experiência da privação, vivida na infância e na adolescência, em uma poderosa chave interpretativa, como bem souberam reconhecer as pessoas que lhe eram mais próximas – atores, diretores e críticos – por estarem inteiramente imersas, como ela, no mundo do teatro.

Comentando o desempenho de Cacilda em Pega-Fogo, Adolfo Celi afirmou, também no livro Uma atriz: Cacilda Becker: “Foi a coisa mais bonita que vi dela. Foi uma coisa extraordinária (...) Ela conseguiu mostrar toda a sua infância, uma infância que não deve ter sido fácil”. Avaliação corroborada (no mesmo livro) pelo historiador do teatro brasileiro Sábato Magaldi, que, desconcertado com a constatação de que os dois papéis de sua predileção na carreira da atriz eram masculinos – Pega-Fogo e Estragon, este em Esperando Godot, de Samuel Beckett (1906-1989) –, esclareceu o significado dessa coincidência. Ela nada tinha a ver com o fato de que Cacilda “aparentasse masculinidade em cena”. Ao contrário, “ela era bem feminina, em tantas criações”. Sua fragilidade pessoal, pondera Sábato, “é que lhes emprestava o corte profundamente humano”.
Walmor Chagas e Cacilda Becker

Para o historiador, “desamparo, tristeza, perplexidade diante da vida, sofrimento contido, humilhação – eram a matéria-prima que vinha das raízes da infância e se colava às personagens, fazendo-as tão autênticas”.

Masculinos, esses dois papéis são a expressão contundente do quanto o ‘nome próprio’ se associa, no caso das grandes atrizes – como a italiana Eleonora Duse (1858-1924), a russa Ludmilla Pittöeff (1895-1951) e as brasileiras Fernanda Montenegro e Cacilda Becker – à corporificação dos mecanismos de burla produzidos pelas convenções teatrais. Dotando o corpo de uma plasticidade imaginária maior do que a exibida em outras artes cênicas – cinema, balé e moda –, o teatro permite às grandes atrizes contornar os imperativos implacáveis da beleza e os constrangimentos impostos pelo envelhecimento. Assim, atrizes de corpo iluminado como Cacilda dão o que pensar sobre a beleza.

Projetada pelo artista moderno, ela só se manifesta por inteiro quando atenua o suporte corporal.

Colaborou: Astros em Revista (com a foto de Walmor Chagas e Cacilda Becker)