Em fevereiro de 1979, o Estúdio Eldorado gravou uma das mais importantes obras musicais do cancioneiro brasileiro: “Sonho de Um Sambista com Nelson Sargento”. Bolacha crioula joia-raríssima, raridade no mundo sonoro brasileiro, principalmente por se tratar do ritmo democrático: o samba.
Hoje o vinilesquizofílico tem três potências intensivas para desterritorializar-se : o Viva o Vinil, o primeiro LP do sambista e a comemoração dos 90 anos desse sambista original, Nelson Sargento, que ocorreu no dia 25 desse mês. É só alegria e muita vibração.
Sem mais delongas, vamos logo ao tema revelador que trata do assunto, o sambista Nelson Sargento que no auge de seus saudosos e ativos 90 anos, continua mandando ver ou mandando brasa. Como diz Nietzsche, ele não pediu descanso à vida.
Mas quem tem que escrever sobre a bolacha crioula é Arley Pereira que apresentou a obra em sua contracapa. Manda ver, Arley Pereira.
“São Paulo, fevereiro, 79.
Nelson,
Ontem o Pelão telefonou: ”Guardei pra você a contracapa do LP do Nelson Sargento, que a gente acabou de gravar”. E a velha raiva-amor voltou ao peito. A raiva santa contra o Pelão, que mais uma vez chegou primeiro, uma abençoada pressa que já deu à música popular brasileira o registro do trabalho-antologia de gente como os nossos Cartola, Carlos Cachaça, Nelson Cavaquinho e tantos mais, um trabalho de necher o peito de inveja.
Quem não gostaria de ter feito?
E o home não para por aí, não.Sem mais aquela, joga na cara do mundo a importância de ter gravado – no selo prestígio Eldorado – nada menos, nada mais que Nelson Sargento.
É quando o amor se funde à raiva. O amor de ouvir vendo o velho amigo. Reconhecendo na voz a figura magra, calva e sorridente que conheci debruçado num inacreditável violão pintado de verde, contribuindo com parcela básica para a ressureição da música popular brasileira participando com seus sambas “Rosa de Ouro” musical-ventre que gerou o interesse de toda uma geração pela nossa cultura musical popular, acabando com o “rock” da mesma maneira como não se deixará sufocar pela “discoteque”.
Quantas vezes “dividimos” o “Rosa”, vovê no palco (mais Paulinho da Viola, Elton Medeiros, Jair do Cavaquinho, Anescarzinho do Salgueiro, Clementina de Jesus e Aracy Cortes), eu na plateia! Os improvisos dos partido-alto-descobertos então pela classe média, que chamava qualquer samba de empolgação de “partido-alto” – rimando brincadeiras entre os sambistas e nós, os mais chegados. Quantas vezes, madrugada fria de São Paulo requerendo a competente cachaça ou a sua favorita “caipirinha”, ouvi casos e coisas da mangueira, cantadas nos seus sambas ou cantadas nas suas gargalhadas, que estremeciam as mesas do “Parreirinha”?
Quantas vezes, Nelson Sargento, nesse início de amizade que desagua em tantos bons momentos, principalmente no meu amor pela Mangueira, pelo qual – único mangueirense no “Rosa”, além da mãe Clementina – cabe à você parte da responsabilidade, o samba esteve presente? Acredito que em todas.
Não tenho lembrança de Nelson Sargento, sem o violão verde – cordas de aço sambas de fina ironia, se competente humor, de deslumbrado amor – sem um samba na boca, seu ou da “gente grande” da Mangueira, já que sabe tudo que os velhos da “Manga” compuseram. Lembra aquela tarde, na casa de Carlos Cachaça, quando você cantou para o Cartola oito sambas dele, que ele mesmo já não lembrava? E da sua promessa, provocando o Velho Divino: “Se me der parceria, canto mais oito”?
Entrar de graça em samba alheio é coisa que seu talento jamais permitirá, Nelson Sargento. Mesmo sem as fulgurações da fama, sem o faturamento do sucesso, guardada em sua humildade, a altivez do sambista respeitado e acatado na colina verde-e-rosa, reduto de gente como Cartola, Xangô, Padeirinho, Preto Rico, Nelson Cavaquinho, Carlos Cachaça, Darcy, Pelado e outros tantos, resistirá sempre. Fazendo sambas de qualidade de “Cântico à Natureza” (ah, vivo fosse o Alfredo Português, padrasto de parceiro, marcado ritmo nos tamancos e quantas outras belezas como estes versos de antologia: “Desabrocham as flores/nos campos nos jardins/e nos quintais/A Primavera é a estação/dos vegetais”) e tantos outros que se não chegaram ao triste destino das paradas de sucesso, alcançaram o respeito e a admiração de seus pares nessa corte maravilhosa que é o Reino Mangueira, do qual só faz parte quem nasce sambista de verdade.
A última vez que nos vimos, foi no seu barraco, lá no “Chalet” da Mangueira. Como você mesmo diz, “se virar o morro de cabeça para baixo, minha casa é a segunda, à esquerda de quem sobe…” Lá no alto, entre um gole e outro, lembrando coisas (como aquela vez que você pintou meu apartamento de sala-e-quarto, num tempo recorde de… dois meses: para cada pincelada, eram necessários dez sambas no violão verde e três “bem geladas” nos copos), você dizia que um dia as coisas mudariam, uma flor iria se abrir. Você já não ora no Chalet, deixou de pintar paredes para se transformar num quase bem sucedido pintor de telas e a flor ameaça se abrir.
O canteiro é este Lp inteiro, feito por quem sabe, para os que sabem ou pretendem saber. Esta é a tua flor, queira Deus que a primeira de todo um jardim. Uma flor importante não só para você, mas também para a música e a cultura popular, feitas por gente que como você tiram da sensibilidade, da inspiração e da arte das quais são íntimos o que não foi possível buscar nos livros.
Acabaram-se raiva e inveja. Maiores que elas, o prazer de estar ouvindo você, enquanto escrevo, a certeza de que a importância do seu trabalho começa a ser reconhecida. E já que daqui de São Paulo, não posso dar o abraço que queria, mando uma certeza: o violão verde que você me deu está aqui na parede, na minha frente, as cordas de aço mudas. Mudas e tristes por não terem sido elas as que acompanham a sua voz, no LP de estreia. Mas disso a culpa é minha, culpa inteiramente justificada pela certeza de que o presente foi sincero. Como sincero é o desejo do sucesso que eu acredito esteja – finalmente – reservado para você, seu talento e sua esplendida figura humana.
Um abraço verde-e-rosa do
Arley Pereira”
Lado – A
Triângulo Amoroso/Falso Moralista/Agoniza Mas Não Morre/A Noite Se Repete/Muito Tempo Depois e Minha Vez de Sorrir.
Lado – B
Sonho de Um Sambista/Infra Estrutura/Primavera/Por Deus Por Favor/Falso Amor Sincero e Lei do Cão.
Ficha Técnica
Regência: Luiz Otávio Braga.
Arranjos: Luiz Otávio Braga, Maurício Lana Carrilho e Luiz Moura na faixa A Noite Se Repete”.
Músicos eu participam do Disco.
Luiz Otávio Brag, Maurício Lana, Luciana, Renato, Téo, Lelei, Bigode, Bibi, Mussum, Branca de Neve, Chiquinho, Azevedo, Gersão e Aeloá.
Capa: Zé Maury.
Foto: Sérgio Pimentel.
Escute e veja o vídeo onde Nelson Sargento e a cantora Tereza Cristina, cantam Samba Agoniza, mas não Morre.
DVD 'Cidade do Samba'
Lançamento 2007
Produtora - Zeca Pagodiscos
Agoniza Mas Não Morre
Composição - Nelson Sargento
Samba,
Agoniza mas não morre,
Alguém sempre te socorre,
Antes do suspiro derradeiro.
Samba,
Negro, forte, destemido,
Foi duramente perseguido,
Na esquina, no botequim, no terreiro.
Samba,
Inocente, pé-no-chão,
A fidalguia do salão,
Te abraçou, te envolveu,
Mudaram toda a sua estrutura,
Te impuseram outra cultura,
E você nem percebeu,
Mudaram toda a sua estrutura,
Te impuseram outra cultura,
E você nem percebeu
Sabedoria, Saúde e $uce$$o: Sempre.