Em 1977, Raul Seixas recebeu em seu
apartamento de Copacabana, no Rio de Janeiro, um fã que, aos poucos,
convertera-se em amigo - era Luiz Silveira, então com 17 anos.
No violão, o roqueiro mostrou ao rapaz uma composição feita com o parceiro Claudio Roberto, batizada de A loucura de Eva.
Contudo, apesar da associação
bem-sucedida com Claudio — a dupla criou clássicos, como Maluco Beleza e
O Dia em que a Terra Parou —, Raul preferiu não gravá-la como fora
concebida.
Com outra letra e renomeada Por Quem os
Sinos Dobram, agora coassinada com o argentino Oscar Rasmussen, Raul
registrou a faixa dois anos depois.
A primeira versão foi para a gaveta,
mas inspirou o mesmo Luiz Silveira a escrever, com autorização do ídolo,
sua adaptação para a canção.
Atemporal
Apesar de menosprezada pelo roqueiro,
ela permaneceu intacta na memória de Claudio Roberto e de Tania Menna
Barreto, companheira de Raul na segunda metade dos anos 1970. Foi ela
quem cantou, ao telefone, a música original. A história da composição
guardada havia sido citada no documentário Raul — O início, o fim e o
meio (2012), no qual o refrão é entoado por Claudio. Esta é a primeira
vez, entretanto, que outros trechos da música chegam ao grande público.
O carioca Claudio Roberto conheceu Raul
quando tinha 11 anos de idade e tornou-se compositor por influência
dele. Desde 1977, vive retirado em um sítio na zona rural de Miguel
Pereira (RJ). Aos 61 anos, disse não saber, e nem se importar, com a
razão pela qual ‘A Loucura de Eva’ não ter sido gravada. “Não faço a
menor ideia, amigo. Isso ele levou para o túmulo”, comentou. “Na época,
algumas pessoas queriam que eu brigasse com ele por esse ou por aquele
interesse, e eu avisei logo que eu não era parceiro do Raul, era amigo.”
Tania Menna Barreto aprendeu os versos
da canção feita por Raul e Claudio e os guardou com carinho. “Eu canto
ela de vez em quando ao violão, inclusive em alguns shows que fiz”,
destacou. A ex-companheira do artista diz preferir A loucura de Eva à
segunda versão, e acredita que a letra de ‘Por quem os sinos dobram’
traz vários recados de Raul para ela, já que, quando foi recriada, o
casal ensaiava uma crise. “É sempre mais fácil achar que a culpa é do
outro”, cantarola, citando um dos versos da parceria com Oscar
Rasmussen, morto há dois anos na Argentina, vítima de câncer.
Sylvio Passos, fundador do primeiro
fã-clube oficial de Raul, também conhece as duas letras, mas discorda de
Tania. “O texto de ‘Por quem os sinos dobram’ é muito mais impactante e
atemporal do que o de ‘A loucura de Eva’. Acho que o Raul não curtiu
muito, não. É interessante a brincadeira com Darwin e tal, mas penso que
ele optou por uma coisa mais ampla”, sugere. Segundo Passos, era comum o
roqueiro baiano refazer algo de que não tinha gostado. “Muitas músicas
do Raul têm vários textos diferentes. Ele aproveitava a melodia e
reEscrevia, com outra ideia no lugar”, afirmou.
Bobagem/Coragem
Quando Raul cantou ‘A loucura de Eva’
para Luiz, disse a ele que gostava muito do refrão, mas nem tanto do
restante da poesia. “E eu, ousadamente, pedi pra tentar mudar”, lembra o
fã, hoje produtor cultural, aos 53 anos. Raul deixou. O resultado é ‘Em
quem Eva mamou?’, inspirada na temática original e de refrão
semelhante, mas com melodia diferente. A faixa foi colocada no YouTube
há algumas semanas, com vocais de André 14 Voltas, e deu início ao
resgate dessa história.
‘Por quem os sinos dobram’, mesmo
título do romance do americano Ernest Hemingway, versa sobre
autoavaliação e encorajamento. A original, de viés feminista, ressalta a
importância de Eva na origem do homem. Foi por esse caminho que Luiz
Silveira seguiu. “Fiz o que Raul me pediu: mantive o refrão e mudei todo
o restante, enaltecendo a figura da mulher. Em’ Por quem…’, ele
aproveitou duas sequências de notas da original e, no refrão, em vez de
‘bobagem’, usou ‘coragem’”, detalha.
Silveira demorou muitos anos para
mostrar o que tinha feito a Raul, mas diz ter tido a aprovação dele no
camarim de um show com Marcelo Nova, no Rio, já no fim da vida do ídolo.
O último suspiro de Raul nos palcos, parte desta mesma turnê, aconteceu
em Brasília, há exatos 24 anos. O roqueiro seria encontrado morto em
seu apartamento em São Paulo, em 21 de agosto de 1989, aos 44 anos.
A Loucura de Eva
(Primeira estrofe e refrão da composição inédita de Raul Seixas e Claudio Roberto)
Ninguém tem certeza
a respeito da origem do homem
Pois a vida não começou onde
a história começa
Mil teorias, é gente falando à beça
E tudo que me oferecem tá sempre faltando uma peça
(…)
Bobagem, bobagem, pensar que o homem nasceu de um macaco qualquer
Bobagem, bobagem, o homem
nasceu da mulher
Por Quem os Sinos Dobram
(Primeira estrofe e refrão da parceria de Raul e Oscar Rasmussen, gravada em 1979, com a mesma melodia anterior)
Nunca se vence uma guerra lutando sozinho
Cê sabe que a gente precisa entrar em contato
Com toda essa força contida e que vive guardada
O eco de suas palavras não repercutem em nada
(…)
Coragem, coragem, se o que você quer é aquilo que pensa e faz
Coragem, coragem, eu sei que você pode mais
Em Quem Eva Mamou?
(O fã Luiz Silveira se aproveitou do refrão da versão original para, com autorização de Raul, criar uma nova canção)
(…) Dão sempre a ela o papel de vilã
E ele o Narciso, macaco galã
Se é paraíso, pra quê sutiã?
Com ou sem leite, se entregue ao deleite
Aproveite o prazer da maçã
(…)
Bobagem, bobagem, bobagem, bobagem
Dizer que o homem veio de um macaco qualquer
Bobagem, bobagem, bobagem, bobagem
O homem veio mesmo foi de uma mulher
Sabedoria, Saúde e $uce$$o: Sempre.