Especialistas buscam os restos de García Lorca em vala
indicada por sobreviventes do franquismo.
Por Natalia Junquera*
“Liguei
para Manolo Martínez Bueso para pedir que os vigiasse e presenciasse a
execução. Depois, Manolo me disse que Federico García Lorca estava de
pijamas e que os tinham matado no campo de instrução das tropas, à
direita da estrada. Ele me disse que dos que foram enterrados, Federico
era o segundo da esquerda”.
Foi o que respondeu José María Nestares, do comando militar da frente de Víznar (Granada), quando, em 1969, Eduardo Molina Fajardo, investigador e falangista (membro da Falange Espanhola, organização paramilitar que ajudou Francisco Franco a chegar ao poder), perguntou a ele onde tinham enterrado o poeta, fuzilado na madrugada do dia 17 de agosto de 1936.
Este e outros 48 testemunhos compilados no livro ‘Los Últimos Días de García Lorca’ levaram uma dúzia de especialistas a voltar a procurar a cova do poeta espanhol mais universal, agora, em um ponto conhecido como Peñón Colorado. A menos de um quilômetro do local da tentativa anterior, realizada em 2009, e com um orçamento muito menor: apenas 15.000 euros (aproximadamente 46.800 reais) frente aos 70.000 euros (cerca de 218.400 reais) fornecidos anteriormente pelo Governo da Andaluzia.
“Tudo está se enquadrando”, disse, sobre a escavação atual, o investigador Miguel Caballero, que contrastou com a documentação histórica, um por um, os 48 testemunhos de falangistas que participaram da detenção, transporte e execução do poeta – coletados por Molina Fajardo. “Desses 48 há 10 que valem muito a pena e são coincidentes. E é preciso levar em conta que Molina Fajardo era falangista e que as pessoas que participaram da execução de Lorca estariam muito mais dispostas a contar a verdade a um colega do que a um historiador”.
Sem autorização da família
Nestares entregou a Molina Fajardo um esboço desenhado do lugar do enterro. Um dos filhos do militar, Fernando Nestares, chegou a ir, de surpresa, com dois guardas que diziam ser testemunhas e executores do fuzilamento do poeta, ao lugar onde ele tinha sido enterrado junto com o professor Dióscoro Galindo e os toureiros Francisco Galadí e Joaquín Argolas: uma vala em Peñón Colorado, a 24 passos da estrada que une as localidades de Víznar e Alfacar.
Anos mais tarde, Fernando Nestares conseguiu fazer com que outro falangista, Pedro Costa, indicasse o lugar. Costa não quis sair do carro, mas voltou a apontar o mesmo ponto e garantiu que seria fácil identificar o poeta porque tinha sido fuzilado junto com Dióscoro Galindo, que era coxo. “Sim, foram enterrados com a muleta em cima deles, já deve estar podre…”, disse.
A primeira meta desta nova busca é encontrar a cova onde os dois foram sepultados, segundo os testemunhos. Caso apareçam restos de seus corpos, a identificação não será difícil, segundo a antropóloga Belén Jimeno: “Uma das vítimas tinha uma perna amputada, um marco inequívoco, e Lorca tinha um crânio muito globuloso, bem característico, além de um defeito nos pés”.
A identificação antropológica é a única que pode ser realizada, já que a família do poeta se opõe à exumação. “Não têm legitimidade alguma porque nossa postura não mudou. Não demos nem vamos dar autorização para procurar seus restos”, afirmou Laura García Lorca, sobrinha do poeta.
Um poeta universal
O Governo andaluz teve o cuidado de não apresentar esta nova busca como a exumação do poeta. “Procuramos vítimas, não Lorca”, ressaltou Luis Naranjo, diretor do departamento de Memória Democrática do Governo da Andaluzia. Sobre a escavação, o diretor dos trabalhos, o arqueólogo Javier Navarro, disse:
“É verdade que não estamos apenas procurando Lorca, mas também vítimas da Guerra Civil. Eu quero ter meus mortos em lugares dignos, e não entendo porque existe gente que não vê as coisas assim. Em qualquer caso, me parece que isto ultrapassa o limite familiar. Federico García Lorca é de todos e não é apresentável que a Espanha tenha seu poeta mais universal jogado em um lugar como este”, concluiu o arqueólogo.
A equipe de especialistas está acompanhada por seis alunos da Universidade de Nottingham, que trabalham em um projeto sobre reconciliação e conflitos. Jessica Heath, de 25 anos, e Freya Macknight, de 26 anos, deixaram Londres com dois de seus professores, Gareth Stockey e Stephen G.H. Roberts, para participar, de perto, desta busca, falar com os responsáveis e com a população. “É muito emocionante, mas também muito triste estar neste lugar e ouvir o que aconteceu”, disse Freya. “É importante que este debate continue aberto porque ainda divide a Espanha”, acrescentou Jessica. No sábado, as duas pegaram pás e ajudaram a escavar a possível cova de Lorca.
Caso restos de corpos sejam encontrados, a equipe de analistas não os exumará. Vai apresentar uma denúncia a um tribunal. Se, como é habitual nestes casos, o juiz arquivar o processo alegando que os supostos delitos foram anistiados ou prescreveram, “a Junta da Andaluzia atuará em ofício e enviará os ossos ao laboratório da Universidade de Granada”, explicou um porta-voz. Os itens encontrados, então, passariam às mãos de analistas como o catedrático de Medicina Legal José Antonio Lorente, que identificou os restos mortais de Cristóvão Colombo; e Francisco Etxeberria, que tocou os ossos de Pablo Neruda e Salvador Allende e que agora procura os de Miguel de Cervantes.
De Madri, o hispanista Ian Gibson continua inquieto a respeito da nova busca após a frustração de 2009, quando os arqueólogos só encontraram uma enorme rocha no lugar indicado como a cova de Lorca. “Se o encontrarem agora não sentirei inveja, nem ressentimento. Iria me alegrar muitíssimo que os restos de Lorca aparecessem, apesar de não ser no lugar que Manuel Castilla [o suposto responsável pelo sepultamento] me apontou. Mas, se não estiverem aí, é preciso continuar a busca. Acho que o lugar com mais possibilidades está a 150 metros de onde se escavou em 2009”.
Anatomia de uma crime
1955. Manuel Castilla, ‘El Comunista’, que disse ter enterrado Lorca junto com o professor Dióscoro Galindo e os toureiros Francisco Galadí e Joaquín Argollas, fornece ao investigador norte-americano Agustín Penón informações sobre o local do sepultamento: um ponto em Alfacar.
1966. Castilla indica o mesmo lugar paraIan Gibson, biógrafo de Lorca.
2008. O juiz Baltasar Garzón ordena a exumação de 19 valas comuns, incluindo aquela em que supostamente estava Lorca. A Audiência Nacional paralisa o processo.
2009. Em setembro, começam as escavações em Alfacar, financiadas pela Junta da Andaluzia. Após um mês e meio de trabalho e 70.000 euros (cerca de 218.400 reais) de investimentos apenas uma pedra foi encontrada.
2014. Uma nova equipe escava outra possível localização da cova de Lorca, em Peñón colorado, com um financiamento de 15.000 euros (aproximadamente 46.800 reais) da Junta da Andaluzia.
Foi o que respondeu José María Nestares, do comando militar da frente de Víznar (Granada), quando, em 1969, Eduardo Molina Fajardo, investigador e falangista (membro da Falange Espanhola, organização paramilitar que ajudou Francisco Franco a chegar ao poder), perguntou a ele onde tinham enterrado o poeta, fuzilado na madrugada do dia 17 de agosto de 1936.
Este e outros 48 testemunhos compilados no livro ‘Los Últimos Días de García Lorca’ levaram uma dúzia de especialistas a voltar a procurar a cova do poeta espanhol mais universal, agora, em um ponto conhecido como Peñón Colorado. A menos de um quilômetro do local da tentativa anterior, realizada em 2009, e com um orçamento muito menor: apenas 15.000 euros (aproximadamente 46.800 reais) frente aos 70.000 euros (cerca de 218.400 reais) fornecidos anteriormente pelo Governo da Andaluzia.
“Tudo está se enquadrando”, disse, sobre a escavação atual, o investigador Miguel Caballero, que contrastou com a documentação histórica, um por um, os 48 testemunhos de falangistas que participaram da detenção, transporte e execução do poeta – coletados por Molina Fajardo. “Desses 48 há 10 que valem muito a pena e são coincidentes. E é preciso levar em conta que Molina Fajardo era falangista e que as pessoas que participaram da execução de Lorca estariam muito mais dispostas a contar a verdade a um colega do que a um historiador”.
Sem autorização da família
Nestares entregou a Molina Fajardo um esboço desenhado do lugar do enterro. Um dos filhos do militar, Fernando Nestares, chegou a ir, de surpresa, com dois guardas que diziam ser testemunhas e executores do fuzilamento do poeta, ao lugar onde ele tinha sido enterrado junto com o professor Dióscoro Galindo e os toureiros Francisco Galadí e Joaquín Argolas: uma vala em Peñón Colorado, a 24 passos da estrada que une as localidades de Víznar e Alfacar.
Anos mais tarde, Fernando Nestares conseguiu fazer com que outro falangista, Pedro Costa, indicasse o lugar. Costa não quis sair do carro, mas voltou a apontar o mesmo ponto e garantiu que seria fácil identificar o poeta porque tinha sido fuzilado junto com Dióscoro Galindo, que era coxo. “Sim, foram enterrados com a muleta em cima deles, já deve estar podre…”, disse.
A primeira meta desta nova busca é encontrar a cova onde os dois foram sepultados, segundo os testemunhos. Caso apareçam restos de seus corpos, a identificação não será difícil, segundo a antropóloga Belén Jimeno: “Uma das vítimas tinha uma perna amputada, um marco inequívoco, e Lorca tinha um crânio muito globuloso, bem característico, além de um defeito nos pés”.
A identificação antropológica é a única que pode ser realizada, já que a família do poeta se opõe à exumação. “Não têm legitimidade alguma porque nossa postura não mudou. Não demos nem vamos dar autorização para procurar seus restos”, afirmou Laura García Lorca, sobrinha do poeta.
Um poeta universal
O Governo andaluz teve o cuidado de não apresentar esta nova busca como a exumação do poeta. “Procuramos vítimas, não Lorca”, ressaltou Luis Naranjo, diretor do departamento de Memória Democrática do Governo da Andaluzia. Sobre a escavação, o diretor dos trabalhos, o arqueólogo Javier Navarro, disse:
“É verdade que não estamos apenas procurando Lorca, mas também vítimas da Guerra Civil. Eu quero ter meus mortos em lugares dignos, e não entendo porque existe gente que não vê as coisas assim. Em qualquer caso, me parece que isto ultrapassa o limite familiar. Federico García Lorca é de todos e não é apresentável que a Espanha tenha seu poeta mais universal jogado em um lugar como este”, concluiu o arqueólogo.
A equipe de especialistas está acompanhada por seis alunos da Universidade de Nottingham, que trabalham em um projeto sobre reconciliação e conflitos. Jessica Heath, de 25 anos, e Freya Macknight, de 26 anos, deixaram Londres com dois de seus professores, Gareth Stockey e Stephen G.H. Roberts, para participar, de perto, desta busca, falar com os responsáveis e com a população. “É muito emocionante, mas também muito triste estar neste lugar e ouvir o que aconteceu”, disse Freya. “É importante que este debate continue aberto porque ainda divide a Espanha”, acrescentou Jessica. No sábado, as duas pegaram pás e ajudaram a escavar a possível cova de Lorca.
Caso restos de corpos sejam encontrados, a equipe de analistas não os exumará. Vai apresentar uma denúncia a um tribunal. Se, como é habitual nestes casos, o juiz arquivar o processo alegando que os supostos delitos foram anistiados ou prescreveram, “a Junta da Andaluzia atuará em ofício e enviará os ossos ao laboratório da Universidade de Granada”, explicou um porta-voz. Os itens encontrados, então, passariam às mãos de analistas como o catedrático de Medicina Legal José Antonio Lorente, que identificou os restos mortais de Cristóvão Colombo; e Francisco Etxeberria, que tocou os ossos de Pablo Neruda e Salvador Allende e que agora procura os de Miguel de Cervantes.
De Madri, o hispanista Ian Gibson continua inquieto a respeito da nova busca após a frustração de 2009, quando os arqueólogos só encontraram uma enorme rocha no lugar indicado como a cova de Lorca. “Se o encontrarem agora não sentirei inveja, nem ressentimento. Iria me alegrar muitíssimo que os restos de Lorca aparecessem, apesar de não ser no lugar que Manuel Castilla [o suposto responsável pelo sepultamento] me apontou. Mas, se não estiverem aí, é preciso continuar a busca. Acho que o lugar com mais possibilidades está a 150 metros de onde se escavou em 2009”.
Anatomia de uma crime
1955. Manuel Castilla, ‘El Comunista’, que disse ter enterrado Lorca junto com o professor Dióscoro Galindo e os toureiros Francisco Galadí e Joaquín Argollas, fornece ao investigador norte-americano Agustín Penón informações sobre o local do sepultamento: um ponto em Alfacar.
1966. Castilla indica o mesmo lugar paraIan Gibson, biógrafo de Lorca.
2008. O juiz Baltasar Garzón ordena a exumação de 19 valas comuns, incluindo aquela em que supostamente estava Lorca. A Audiência Nacional paralisa o processo.
2009. Em setembro, começam as escavações em Alfacar, financiadas pela Junta da Andaluzia. Após um mês e meio de trabalho e 70.000 euros (cerca de 218.400 reais) de investimentos apenas uma pedra foi encontrada.
2014. Uma nova equipe escava outra possível localização da cova de Lorca, em Peñón colorado, com um financiamento de 15.000 euros (aproximadamente 46.800 reais) da Junta da Andaluzia.
*Natalia Junquera, de Granada para o jornal El País.