Museu do Ipiranga é fechado às pressas e só deve reabrir em 2022
O jornalista e historiador Laurentino Gomes, autor de 1808 e 1822, escreve sobre o péssimo estado de conservação da instituição, que guarda um acervo estimável da história do país
O mais antigo e querido museu de São Paulo, o do Ipiranga, está fechado
ao público desde o último fim de semana, sem previsão de reabertura. O
fechamento, anunciado de forma abrupta no domingo (4) pela direção do Museu Paulista,
braço da Universidade de São Paulo (USP) responsável pela administração
do local, pegou os paulistanos de surpresa. Esta será a primeira vez em
um século que o prédio não ficará aberto durante a Semana da Pátria,
que marca as celebrações da Independência do Brasil. Em média, cerca de
3.000 pessoas visitam o lugar todos os dias. No feriado de 7 de Setembro
o número mais que triplica. Entre os frequentadores assíduos estão
professores e estudantes das escolas da capital e cidades vizinhas.
Em qualquer lugar do mundo, prédios e monumentos históricos necessitam
de manutenção com frequência. Isso, muitas vezes, exige o fechamento
parcial ou mesmo total desses locais, enquanto passam por obras de
restauração ou reforma. O que surpreende no caso do Ipiranga é que a
situação tenha chegado a tal ponto de calamidade e que ninguém tenha
tomado uma providência antes. A USP tem o museu sob sua responsabilidade
há cinquenta anos, ou seja, meio século — o que torna ainda mais
inexplicável a forma improvisada e atabalhoada com que a interdição foi
anunciada no domingo passado.
Tudo foi feito às pressas e sem comunicação adequada. Os visitantes que chegaram nesse dia encontraram as portas fechadas. Um recital de quarteto de flautas, previsto para o fim de semana, foi cancelado. Aulas e cursos planejados no calendário do segundo semestre foram transferidos para outro endereço da USP, no bairro de Higienópolis. No próprio domingo, uma nota lacônica assinada pela diretora, Sheila Walbe Ornstein, e distribuída pela assessoria de imprensa, comunicava que o monumento estaria fechado a partir daquela data, em razão de um “diagnóstico preventivo da situação do prédio”.
Mesmo depois de anunciado o fechamento, ainda não é possível cravar quando as obras vão efetivamente começar. A expectativa é o ano que vem, após a conclusão de análises que estão sendo realizadas na estrutura e na pintura da edificação e a obtenção de autorizações em órgãos públicos. Também não há certeza de quanto tempo vão durar e quando o museu será reaberto ao público. Uma previsão, ainda a ser confirmada, é que o conjunto todo fique pronto só em 2022, ano do bicentenário da Independência. Serão oito anos de obras, cronograma surpreendente para um país que, no prazo de poucos meses, tem conseguido erguer quase uma dúzia de estádios de futebol de nível europeu para a Copa do Mundo de 2014.
Situado no alto da colina em que o então príncipe regente e futuro
imperador Pedro I teria encenado o famoso Grito do Ipiranga, no fim da
tarde de 7 de setembro de 1822, o museu fechado ao público na semana
passada é apenas parte de um grande problema. À frente dele estende- se o
Parque da Independência, um importante espaço de lazer da capital
frequentado por milhares de pessoas nos fins de semana e feriados. Ali
também o descaso é grande. Diversos pontos do gramado, dos jardins e
alamedas que cortam o espaço estão tomados por ervas daninhas. A
sinalização é precária e os vizinhos reclamam de falta de segurança à
noite. No monumento, situado junto ao riacho, as paredes são
frequentemente usadas como banheiro público. “Está tudo abandonado”,
reclama Valdir Abdallah, presidente da Comissão Cultural e Cívica do
Parque da Independência. “Para ter uma ideia, somos nós que pagamos pela
bandeira do Brasil que fica hasteada em frente ao monumento. Fazemos
isso a cada três meses, há mais de dez anos, e gastamos cerca de 1 300
reais, em uma iniciativa que deveria ser responsabilidade do poder
público.”
Nada, porém, se compara à destruição sistemática de que tem sido alvo o próprio riacho que serviu de cenário para a Independência do Brasil. Em tupi-guarani, ipiranga significa “rio vermelho”, devido às suas águas barrentas. Em 1822, era um arroio de águas limpas em meio às roças e pastagens salpicadas de cupinzeiros das chácaras e sítios que se estendiam por um local ermo, de população rarefeita. De suas margens até a cidade de São Paulo havia apenas oito casas, onde moravam 42 pessoas. Hoje, é um canal de esgotos encaixotado sob o asfalto e o concreto de uma das maiores metrópoles do planeta. Das 24 nascentes originais, situadas dentro do Parque Estadual das Fontes do Ipiranga, quatro desapareceram pela redução do lençol freático na região. Alguns quilômetros adiante, após receber uma quantidade monumental de lixo, descargas domésticas e industriais, o Ipiranga deságua no Rio Tamanduateí. Ali, o índice de poluição é de 62 miligramas por litro de água. A taxa de oxigênio, próxima de zero nos meses sem chuvas, faz dele um rio morto, incapaz de abrigar peixes ou qualquer outra forma de vida.
Curiosamente, parte dos problemas não é resultado da ausência do poder
público, mas de excesso dele. A responsabilidade pela manutenção do
conjunto é dividida entre os governos municipal e estadual — o que
resulta em um permanente bate-cabeça de autoridades. Enquanto o museu é
território da Universidade de São Paulo, o parque é administrado pela
Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente. O monumento, por sua
vez, é da Secretaria Municipal de Cultura. O parque e seus edifícios são
tombados nas três esferas de governo. Por isso, qualquer projeto de
reforma precisa da aprovação de pelo menos três órgãos — Iphan
(federal), Condephaat (estadual) e Conpresp (municipal). “Quando muitos
mandam, ninguém resolve nada”, afirma Abdallah.
O abandono do patrimônio histórico, artístico e cultural, infelizmente, não é novidade no Brasil. Em todo o país, museus e monumentos, casarões e edifícios antigos, ruas, praças e outros cenários de acontecimentos importantes estão em ruínas, tomados pelo matagal ou simplesmente desapareceram do mapa sem que alguém se desse conta de sua existência. O que torna o caso do Ipiranga mais dramático é a enorme carga simbólica que ele representa para os brasileiros. Foi naquela encosta de colina que o Brasil começou a se constituir em nação em 1822.
Do ponto de vista da história, nada do que se vê hoje por ali é original da época da Independência. Tudo foi construído muitos anos depois — a chamada Casa do Grito, o monumento, o prédio do museu e os jardins e as alamedas frequentadas pelos visitantes nos fins de semana. A rigor, atualmente não se tem certeza nem mesmo do local em que teria ocorrido o famoso brado. As diversas marcações realizadas posteriormente variam de 400 a 600 me tros na margem esquerda do riacho. Por essa razão, no fim do século XIX, ao ser contratado pelo imperador Pedro II para conceber o célebre quadro que hoje aparece no salão nobre do museu, o pintor Pedro Américo nem sequer perdeu tempo na inútil tentativa de achar o ponto exato do acontecimento ou reconstituí-lo em seus detalhes. Copiou simplesmente outra tela, do francês Jean-Louis Ernest Meissonier, produzida anos antes para celebrar a vitória de Napoleão na Batalha de Friedland, ocorrida em 1807. Acusado de plágio, defendeu-se em texto no qual afirma que leu, pesquisou, entrevistou testemunhas oculares e visitou o local, “mas por motivos estéticos foi obrigado a fazer as modificações nos personagens e no cenário”.
Portanto, sob o ponto de vista estritamente das marcas do passado, o
Ipiranga mais se assemelha a um parque temático do que a um monumento
histórico. Ainda assim, é preciso impedir que caia definitivamente no
abandono. Construído e organizado por diferentes gerações que nos
antecederam desde a época da Independência, ele é, de certa forma, a
projeção do que nós gostaríamos de ter sido nesses últimos dois séculos:
um país de espaços amplos e bem organizados, repleto de áreas verdes e
de lazer, com marcos bem delimitados onde as pessoas conseguiriam se
alegrar e se reconhecer, um museu com obras de arte bonitas e famosas,
que evocam os construtores da pátria, desde a época dos bandeirantes até
a implantação da República. Em especial, lembra um Brasil com pai e
mãe, representados pelo mausoléu onde se guardam os restos mortais de
Pedro I, Leopoldina e Amélia. Como se sabe, o país real é mais órfão,
menos organizado, mais incerto e imprevisível do que o cenário ali
imaginado.
Zelar pela conservação do Ipiranga é como cuidar de um espelho no qual, de tempos em tempos, os brasileiros se miram em busca de suas origens e de sua identidade. E a imagem que aparece hoje não é nada boa.
A desculpa oficial para o fechamento é que o museu precisa de reformas
urgentes. O edifício, que acaba de comemorar 120 anos de inauguração,
está caindo aos pedaços. No salão nobre, cuja parede principal ostenta o
quadro Independência ou Morte, do paraibano Pedro Américo, o teto
descolou-se e ameaçava cair sobre os visitantes. O forro de salas
vizinhas está prestes a desabar por causa da infiltração de água da
chuva. A pintura de vários ambientes se encontra rachada e apresenta
mofo. As portas, com fechaduras antigas, emperram. Manchas de sujeira
cobrem tanto um busto do marechal Floriano Peixoto, o segundo presidente
da República, no subsolo, como um espelho que pertenceu à marquesa de
Santos, amante do imperador Pedro I, em uma sala da torre leste do 1º
andar. Uma carruagem do século XIX, no térreo, está com a forração
rasgada em vários pontos. Na fachada do edifício, trechos sem reboco
deixam os tijolos à mostra. Na parte dos fundos, onde bate menos sol, a
tinta descascou e as paredes foram tomadas pelo musgo. O estado de
abandono é uma ameaça não só à segurança dos visitantes mas também ao
precioso acervo, composto de 150 000 peças, uma biblioteca com mais de
100 000 volumes e um centro de documentação com 40 000 papéis e
manuscritos.
(Foto: Fotos de Mário Rodrigues)
Tudo foi feito às pressas e sem comunicação adequada. Os visitantes que chegaram nesse dia encontraram as portas fechadas. Um recital de quarteto de flautas, previsto para o fim de semana, foi cancelado. Aulas e cursos planejados no calendário do segundo semestre foram transferidos para outro endereço da USP, no bairro de Higienópolis. No próprio domingo, uma nota lacônica assinada pela diretora, Sheila Walbe Ornstein, e distribuída pela assessoria de imprensa, comunicava que o monumento estaria fechado a partir daquela data, em razão de um “diagnóstico preventivo da situação do prédio”.
Mesmo depois de anunciado o fechamento, ainda não é possível cravar quando as obras vão efetivamente começar. A expectativa é o ano que vem, após a conclusão de análises que estão sendo realizadas na estrutura e na pintura da edificação e a obtenção de autorizações em órgãos públicos. Também não há certeza de quanto tempo vão durar e quando o museu será reaberto ao público. Uma previsão, ainda a ser confirmada, é que o conjunto todo fique pronto só em 2022, ano do bicentenário da Independência. Serão oito anos de obras, cronograma surpreendente para um país que, no prazo de poucos meses, tem conseguido erguer quase uma dúzia de estádios de futebol de nível europeu para a Copa do Mundo de 2014.
A espada de dom Pedro I, quebrada no Monumento à Independência: abandono
(Foto: Mario Rodrigues)
Nada, porém, se compara à destruição sistemática de que tem sido alvo o próprio riacho que serviu de cenário para a Independência do Brasil. Em tupi-guarani, ipiranga significa “rio vermelho”, devido às suas águas barrentas. Em 1822, era um arroio de águas limpas em meio às roças e pastagens salpicadas de cupinzeiros das chácaras e sítios que se estendiam por um local ermo, de população rarefeita. De suas margens até a cidade de São Paulo havia apenas oito casas, onde moravam 42 pessoas. Hoje, é um canal de esgotos encaixotado sob o asfalto e o concreto de uma das maiores metrópoles do planeta. Das 24 nascentes originais, situadas dentro do Parque Estadual das Fontes do Ipiranga, quatro desapareceram pela redução do lençol freático na região. Alguns quilômetros adiante, após receber uma quantidade monumental de lixo, descargas domésticas e industriais, o Ipiranga deságua no Rio Tamanduateí. Ali, o índice de poluição é de 62 miligramas por litro de água. A taxa de oxigênio, próxima de zero nos meses sem chuvas, faz dele um rio morto, incapaz de abrigar peixes ou qualquer outra forma de vida.
A Casa do Grito: local foi reconstruido e não apresenta mais as características originais
(Foto:
Sérgio Tauhata
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O abandono do patrimônio histórico, artístico e cultural, infelizmente, não é novidade no Brasil. Em todo o país, museus e monumentos, casarões e edifícios antigos, ruas, praças e outros cenários de acontecimentos importantes estão em ruínas, tomados pelo matagal ou simplesmente desapareceram do mapa sem que alguém se desse conta de sua existência. O que torna o caso do Ipiranga mais dramático é a enorme carga simbólica que ele representa para os brasileiros. Foi naquela encosta de colina que o Brasil começou a se constituir em nação em 1822.
Do ponto de vista da história, nada do que se vê hoje por ali é original da época da Independência. Tudo foi construído muitos anos depois — a chamada Casa do Grito, o monumento, o prédio do museu e os jardins e as alamedas frequentadas pelos visitantes nos fins de semana. A rigor, atualmente não se tem certeza nem mesmo do local em que teria ocorrido o famoso brado. As diversas marcações realizadas posteriormente variam de 400 a 600 me tros na margem esquerda do riacho. Por essa razão, no fim do século XIX, ao ser contratado pelo imperador Pedro II para conceber o célebre quadro que hoje aparece no salão nobre do museu, o pintor Pedro Américo nem sequer perdeu tempo na inútil tentativa de achar o ponto exato do acontecimento ou reconstituí-lo em seus detalhes. Copiou simplesmente outra tela, do francês Jean-Louis Ernest Meissonier, produzida anos antes para celebrar a vitória de Napoleão na Batalha de Friedland, ocorrida em 1807. Acusado de plágio, defendeu-se em texto no qual afirma que leu, pesquisou, entrevistou testemunhas oculares e visitou o local, “mas por motivos estéticos foi obrigado a fazer as modificações nos personagens e no cenário”.
O imperador Pedro I e a imperatriz Leopoldina: os restos mortais do
casal estão guardados no mausoléu construido sob o monumento às margens
do córrego do Ipiranga
(Foto:
Acervo Biblioteca Nacional de Portugal/Reprodução do livro '1822'
)
)
Zelar pela conservação do Ipiranga é como cuidar de um espelho no qual, de tempos em tempos, os brasileiros se miram em busca de suas origens e de sua identidade. E a imagem que aparece hoje não é nada boa.
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