Código Civil proíbe lançamento do gênero, e os próprios pesquisadores e editores se autocensuram
RIO - O Brasil tem uma coleção de histórias de vida não contadas — ou versões delas. Como o Código Civil proíbe a publicação de biografias não autorizadas, os próprios pesquisadores e editores se autocensuram, temendo processos.
Nessa situação está a biografia da bilionária socialite Lily Safra, impedida há duas semanas de ser vendida on-line — mas antes já rejeitada por ao menos um editor, que não quis comprar briga. Guimarães Rosa também teve uma biografia recolhida em 2008. Liberada pela Justiça na semana passada, ela dificilmente voltará a catálogo, pelos custos de relançamento. Outros dois na lista de “imbiografáveis” são Lupicínio Rodrigues e Mário de Andrade — cuja família diz que não vai autorizar duas biografias que estão sendo escritas. Livros sobre Roberto Carlos e Raul Seixas também já foram proibidos. E, para piorar, o projeto de lei para liberar as obras biográficas está emperrado na Câmara dos Deputados — e corre o risco de caducar antes de ser aprovado.
“Gilded Lily — A biography of Lily Safra, one of the world’s wealthiest widows”, da jornalista canadense Isabel Vincent, foi proibida pela juíza Carla Tria, da 7ª Vara Cível de Curitiba. Mesmo sem nunca ter sido publicado no Brasil, o formato digital do livro teve que ser retirado das lojas da Amazon e da Kobo pela editora americana Harper Collins, que não quis comentar o caso. Na obra, Isabel afirma haver falhas na investigação policial sobre a morte de dois maridos de Lily Safra.
— Nos ofereceram esse livro, mas não podíamos publicar. A Lily Safra tem muito mais dinheiro do que nós, jamais poderíamos enfrentá-la em um processo — diz um editor brasileiro, que não quis se identificar.
Segundo a jornalista, o inquérito não levou em conta o fato de os seguranças do segundo marido de Lily, o banqueiro Edmond Safra, terem sido dispensados no dia em que ele foi morto em um incêndio criminoso, em 1999. Isabel também sustenta que o primeiro marido de Lily — Alfredo Monteverde, dono da rede Ponto Frio, que teria se suicidado em 1969 — estava se divorciando dela quando morreu e que o irmão da socialite, Artigas Watkins, esteve na mansão do casal no dia da morte. Esses fatos, diz a autora, também não estão no inquérito.
Filho de Artigas e autor de processo contra a editora, Leonardo Watkins garante que o pai nunca conviveu com Monteverde, e vê o livro como um atentado à honra da família. Os assessores de Lily, que não comenta o caso, dizem que a obra é “ficção mascarada de biografia”, baseada em “especulações e falsidades”.
— Passei três anos pesquisando, e me baseei em documentos públicos. Nenhum país além dos EUA quis publicar. O Brasil não tem liberdade de imprensa — diz Isabel.
Uma semana após a proibição da biografia de Lily, “Sinfonia de Minas Gerais — A literatura e a vida de Guimarães Rosa” (LGE Editora), de Alaor Barbosa, foi liberada pelo juiz Maurício Magnus, da 24ª Vara Cível do Rio de Janeiro. O livro fora recolhido após acusação de plagiar “Relembramentos — João Guimarães Rosa, meu pai”, escrito por Vilma Guimarães Rosa, filha do autor.
Uma perícia concluiu que só 8% da biografia eram citação da obra de Vilma. Por isso, a Nova Fronteira, que publica as obras Rosa, não vai recorrer da decisão. Advogado de Barbosa, Daniel Campello Queiroz, afirma que citações até foram retiradas, mas a editora é pequena e não deve pagar os custos de um novo lançamento.
Pesquisadores acusam Vilma e sua irmã, Agnes, de não gostarem que se fale da relação entre o escritor e Araci, sua segunda mulher, impedindo novas publicações.
— Depois do meu doutorado, vi que tinha condições de escrever uma biografia. Mas, como teria que enfrentar a autorização, acabei desistindo — diz a professora da USP Sandra Vasconcellos, curadora do acervo de Rosa.
Vilma diz que não dificulta publicações, mas deixa as decisões para seus advogados, já que “muita gente quer ganhar dinheiro às custas de Guimarães Rosa”.
Além de questões íntimas dos herdeiros, também há biografias que esbarram em tabus. É o caso de Mário de Andrade, até hoje sem uma obra de fôlego sobre sua vida. Os pesquisadores tinham medo de investigar a suposta homossexualidade do escritor, além dos relatos de que ele abusava de drogas e álcool.
— Eu me lembro de ouvir pessoas falando sobre isso. Muitos diziam: “Ah, não vamos chatear a Dona Gilda!” Não era que ela proibisse, mas as pessoas se sentiam inibidas — diz um editor, que pediu para não ser identificado.
“Dona Gilda” era a professora Gilda de Mello e Souza, sobrinha de Mário de Andrade, morta em 2005. Quase 70 anos após a morte do escritor, o jornalista Jason Tércio e o pesquisador Eduardo Jardim trabalham em biografias sobre ele. Os dois dizem não haver provas de sua homossexualidade e não temem processos, já que não pretendem tratar o assunto de forma sensacionalista. Mas podem ter problemas no futuro.
— Eu sou contra a publicação de biografias. Não só do Mário, mas de pessoas com morte recente. Em princípio, eu não autorizaria. Sou a favor da forma como a legislação funciona — diz Carlos de Andrade Camargo, sobrinho e herdeiro do poeta.
Ameaça à imagem de Lupicínio
Outro problema dos biógrafos ocorre quando eles ameaçam a imagem que a família tenta construir. Pesquisadores dizem que os herdeiros de Lupicínio Rodrigues tentam ocultar sua paixão pela boemia e pelas mulheres, cantada em seus versos.
Marcia Ramos, pesquisadora da Universidade Estadual de Santa Catarina, tentou publicar sua tese de doutorado sobre o compositor, mas não conseguiu.
— Todas as vezes que conversei com o filho de Lupicínio, ele tentou me passar uma imagem laudatória do pai. Mas isso não exclui o Lupicínio boêmio. É impossível não falar de sua relação com a boemia. Acho que, depois que ele se casou, sua esposa teve que aceitar as amantes. Há um pensamento meio conservador por trás desses impedimentos. A vida interessa para entender a obra — diz Marcia.
Herdeiro do compositor, o advogado Lupicínio Rodrigues Filho diz que atende a um pedido do pai.
— Ele me pediu para analisar tudo que escrevessem. Falou que não era um boêmio inveterado, não teve uma vida nefasta e sempre foi um chefe de família exemplar. O que é verdade. Eu não dificulto, só não aceito que cada um faça o quiser — diz o herdeiro.
Com o passar do tempo, fica difícil ter acesso a fontes primárias das biografias. A maior parte dos amigos próximos de Guimarães Rosa, Mário de Andrade e Lupicínio Rodrigues, por exemplo, já morreu.
— Grandes e importantes histórias estão deixando de ser escritas, prejudicando o conhecimento das gerações futuras — disse ontem Sonia Jardim, presidente do Sindicato Nacional de Editores de Livros (Snel), na abertura da Bienal do Livro. — As biografias são um ponto em que andamos para trás desde a primeira bienal, em 1983.
Projeto corre o risco de caducar
Conhecido como PL das Biografias, o projeto de lei 393/2011, do deputado Newton Lima (PT-SP), propõe uma mudança no artigo 20 do Código Civil, para que biografias não precisem de autorização quando seus personagens tiverem “notoriedade pública”. O projeto já havia sido aprovado, em caráter terminativo, em duas comissões da Câmara dos Deputados, a de Constituição e Justiça e a Educação e Cultura. Estava pronto para ser votado no Senado e, então, seguir para sanção presidencial. Mas um recurso do deputado Marcos Rogério (PDT-RO) fez o projeto voltar à Câmara. Segundo Newton Lima, isso significa o enterro do PL — já que o prazo de aprovação termina no fim de 2014, e agora ele tem que voltar para a fila de votação. A Associação Nacional de Editores de Livros também entrou com uma ação direta de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal, pedindo que os artigos 20 e 21 do Código, que versam sobre o tema, sejam declarados inconstitucionais.
Globo.
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