23 junho, 2013

O DESPERTAR DA CIDADANIA A CAMPANHA DAS DIRETAS-JÁ

Sulinha Imprensa Livre - me arrUpia todas vezes que vejo essa Foto... estava lá... Emocionante..

25 de janeiro de 1984, na Praça da Sé, em São Paulo, um milhão de pessoas se reuniram pelas Diretas Já.
O DESPERTAR DA CIDADANIA
A CAMPANHA DAS "DIRETAS-JÁ"
     "Um, dois, três... quatro cinco mil... queremos eleger o Presidente do Brasil!" Durante meses, esse grito, por anos entalado na garganta, se ouve pelo país afora, entoado por milhões de brasileiros que, espontaneamente, vão às ruas exigir dos governantes que lhes devolvam o que lhes pertence, qual seja, o direito de gerir suas próprias vidas, que começa pelo direito elementar de conduzir, pelo voto, os destinos da Nação.
     Tudo começa timidamente, com uma ou outra manifestação isolada, até que explode nas ruas de forma incontrolável, com o povo arrancando a bandeira das mãos dos políticos e empurrando à sua frente a oposição e o governo, bem como todos os meios de comunicação, no início refratários ao movimento. Não há como ficar parado. É caminhar, ou ser esmagado pela multidão.
     Todos os expedientes são tentados pelo governo para deter as aspirações populares, com o enxerto de agentes duplos no palanque ou com a pífia tentativa de atribuir essas manifestações a comunistas e revanchistas. Finalmente, tenta-se outra forma de intimidação, com a implantação do estado de emergência em Brasília, às vésperas da votação, impedindo a entrada de manifestantes e censurando o noticiário do rádio e da televisão, punindo quem ousasse transmitir notícias, mesmo por telefone, sobre o que acontecia na capital federal.
     A discussão da mudança constitucional é iniciada com a apresentação da emenda Dante de Oliveira em 2 de março de 1983. A primeira manifestação pública de que se tem registro acontece em Goiânia-GO, em 15 de junho de 1983, por iniciativa do PMDB, reunindo perto de 3 mil pessoas.
     Em seguida há outros pequenos encontros em vários pontos do país, envolvendo PMDB, PT, PDT e PTB. O pequeno veio dágua vai recebendo afluentes e acaba se transformando num rio caudaloso que deságua em Brasília, onde, em 25 de abril de 1984, é votada a emenda constitucional.
     Lembrar a campanha das Diretas-Já emociona e é muito difícil manter-se neutro diante dos acontecimentos. O Brasil é pobre de movimentos populares. Todos eles são dirigidos de cima para baixo. A população é incentivada a participar, mas contida dentro de certos limites, estabelecidos pelos organizadores. Ou, como a fala de uma peça teatral, "o povo entra na História [e sai dela] pela porta dos fundos".
Vox populi, vox Dei
     A campanha das Diretas é diferente e foge totalmente do controle de seus mentores, que deixam de ser agentes para transformarem-se em pacientes. O agente principal passa a ser o povo, que lhes abre o caminho, levando a todos de roldão.
     Esse histórico movimento põe à mostra a fragilidade do poder central neste instante, o qual sente-se impossibilitado de conter o movimento pelas leis vigentes, sendo obrigado a usar armas de guerra, como a desinformação e a intimidação, quando não, é levado a apresentar justificativas estapafúrdias. Como, por exemplo, a declaração do general Costa Cavalcanti, presidente da Eletrobrás, de que era contra as eleições diretas porque elas não estavam previstas na Constituição. Mas, ora bolas, emendas constitucionais existem justamente para alterar a Constituição!
     As Diretas-Já tem seu apresentador na pessoa do narrador esportivo Osmar Santos, que controla as massas como um hábil regente dirige sua orquestra; tem sua musa, a atriz Cristiani Torloni, rodeada por um séquito de outras belas atrizes da televisão, do cinema e do teatro; tem sua música, "Caminhando", de Geraldo Vandré (vem, vamos embora, que esperar não é saber; quem sabe faz a hora, não espera acontecer); tem sua cor, o amarelo, escolhida pelo editor Caio Graco Prado, da Editora Brasiliense.
     Tem seu cronista, o jornalista Ricardo Kotscho, que começou repórter mas foi, aos poucos, perdendo a isenção, atirando-se de corpo e alma na narrativa apaixonada dos acontecimentos; tem seu jornal, a Folha de São Paulo, que entra com fé e orgulho no movimento; tem até sua caloura, a adolescente Fafá de Belém, que, pela primeira vez, participa de um movimento popular, se entusiasmando e se emocionando a todo o momento; e tem um calouro, o cacique-deputado Mário Juruna, que trocou a borduna pela palavra;
     Tem até seus espadachins, Ulisses Guimarães, Lula e Doutel de Andrade, apelidados de "Os Três Mosqueteiros"; tem a participação maciça de artistas ("todo artista vai aonde o povo está..."); tem, principalmente o povo, saturado de 20 anos de regime militar, que sente renascerem suas esperanças de um Brasil melhor.
     A sociedade civil está presente, representada pelos seus mais expressivos órgãos, e pelas suas figuras mais proeminentes. Nos palanques é possível encontrar, de mãos dadas, Chico Buarque e Caetano Veloso; o jurista Sobral Pinto e o historiador Hélio Silva; o apresentador Abelardo Barbosa (Chacrinha) e o cacique-deputado Mário Juruna.
     Politicamente, o movimento consegue acuar o presidente da República no Palácio do Planalto, enquanto no partido governista há uma debandada de políticos, muitos deles com voto no parlamento, não querendo comprometer seu futuro colidindo de frente com o eleitorado.
     O velho "coronel" das Minas Gerais, Magalhães Pinto, perguntado sobre se estava "em cima do muro", responde, enigmático: "Sim, eu estou, mas o muro está andando..." (No dia da votação, Magalhães Pinto esquivou-se, faltando à sessão em que deveria votar pelo "sim" ou pelo "não". O muro chegou ao seu destino, mas ele não desceu...)
     As diretas, afinal, não são aprovadas, mas a nação aprende a conduzir e não ser conduzida. O governo fica na defensiva. O presidente Figueiredo tenta coordenar o processo sucessório, impondo seu candidato, coronel Mário Andreazza, mas não consegue. Sua autoridade sofrera um abalo com danos irrecuperáveis, não sendo ouvido pelos inúmeros postulantes do próprio partido.
     O PDS, que deveria chegar uno às eleições, racha ao meio e a oposição ganha novos adeptos, elegendo o presidente da República mesmo por via indireta. E elege um civil, não um militar como desejava Figueiredo.
     Ninguém consegue controlar um povo que, a partir de certo momento, resolve traçar por si o seu próprio futuro. As velhas raposas políticas aninhadas no PDS se esqueceram disso. O presidente Figueiredo também ignorou essa verdade elementar e fracassou. Fracassou e perdeu seu lugar de destaque na História.
Vai-não-vai
     O movimento das Diretas-Já começou como um balão que sobe mas, a certa altura, fica indeciso quanto ao caminho a seguir. Depois, embalado pelos ventos, lá se vai, em direção ao céu infinito.
     O primeiro grito pelas Diretas se ouviu em Goiânia, a 15 de junho de 1983, três meses e meio após a apresentação da emenda Dante de Oliveira. No dia 26 do mesmo mês, Ulisses Guimarães realiza um ato público em Teresina-PI. Em Pernambuco, o primeiro comício, em 12 de agosto, reúne vários partidos da oposição, com a presença destacada de Teotônio Vilela. Em Cleveland-EUA, onde se encontra colocando pontes de safena e de mamária, o presidente Figueiredo manda um recado em que "admite" eleições diretas, mas só para 1990.
     Alguns governadores do PDS já ensaiam sua adesão, como Roberto Magalhães, de Pernambuco, seguido, pouco depois, por Esperidião Amim, de Santa Catarina. O vice-Presidente, Aureliano Chaves, não adere, mas faz chover no molhado, ao reconhecer a soberania do Congresso para cuidar do assunto.
     O que se segue daí até novembro é uma cortina de fumaça, montada pelo governo federal, para dizer que não é a favor e nem contra, muito pelo contrário... O chefe da Casa Civil, Leitão de Abreu acha que o assunto pode ser negociado; o ministro Danilo Venturini adverte que a negociação precisa ser ampla e não envolver apenas a oposição.
     Já o coronel Mário Andreazza, ministro do Interior e o preferido da corte para a sucessão, protesta: "O presidente Figueiredo não faria essa tolice..." Mas o ministro da Marinha, almirante Maximiniano da Fonseca, diverge do bloco, manifestando-se claro e incisivo: "Só o Congresso é que pode mudar. Que mude e faça as eleições diretas!"
     Em novembro, o presidente Figueiredo, recuperado do susto com a operação ("me abriram como um frango assado", disse ele) viaja para a África e, em Lagos (Nigéria) declara que ele, pessoalmente, é favorável às diretas mas o PDS não as quer. É um "blá-blá-blá" que não acaba mais.
Pacaembu é o marco inicial
     Mas o que se considera como o marco inicial da campanha é o comício programado pelo PT para 27 de novembro na praça Charles Müller, em frente ao Estádio Municipal do Pacaembu, em São Paulo. Foram convidados os outros partidos políticos e entidades representativas da sociedade civil, entretanto, vários atos falhos comprometeram o sucesso.
     Primeiro que, por ser iniciativa isolada de um partido, os demais se mostraram arredios, pois ninguém coloca azeitona em empada alheia. Empreendimentos dessa natureza carecem de uma organização conjunta para cuidar dos detalhes e evitar o radicalismo sectário, que acaba comprometendo a todos.
     Segundo que, marcada a data, descobriram que, nesse mesmo dia 27 de novembro, domingo, se realizaria outra concentração, na praça da sé, protestando contra a presença de soldados americanos na Nicarágua. Um dos comícios precisaria ser suspenso, mas os dois lados optaram pela pior solução: juntar os dois movimentos em um só e fazer uma única concentração no Pacaembu.
     Assim, naquela tarde de domingo, um grande palanque foi montado no Pacaembu para o comício das diretas mas, sobre ele, uma faixa, estendida de ponta-a-ponta, dizia: "Ianques, tirem as patas da Nicarágua!"
     É claro que não podia dar certo. Os jornais e a mídia eletrônica noticiaram com destaque o fato e o governo não deixou por menos, insinuando a origem espúria da manifestação.
     De resto, apesar da propaganda e da quermesse que o PT instalou nas ruas vizinhas, não chegaram a comparecer à concentração sequer 15 mil pessoas, desanimando a oposição e dando alento aos governistas, estes últimos acreditando que o movimento começava a declinar.
A morte de Teotônio Vilela
     A data de 27 de novembro, de fato, marcou não uma, mas duas tristes coincidências. A primeira, foi o fracasso do comício Diretas-Nicarágua, que nem chegou a ser pelas diretas, nem tampouco pela Nicarágua invadida pelos ianques. A segunda foi a morte de um dos baluartes da democracia, Teotônio Vilela, o menestrel das Alagoas.
     Teotônio Vilela vinha defendendo um novo Brasil desde os tempos em que era governista, divergindo de seus companheiros da Arena. Durante o governo Geisel, por iniciativa própria, viajou pelo país inteiro e, de seus contatos, criou o Projeto Brasil, oferecendo-o como contribuição ao governo. Não foi levado a sério.
      Depois, na segunda e mais perigosa greve do ABC, foi ele que, com Fernando Henrique Cardoso, serviu de intermediário entre polícia e grevistas, atuando desesperadamente para evitar um confronto entre as duas forças.
     Lançadas as primeiras consultas sobre a emenda constitucional, também foi ele que serviu de porta-voz das diretas, mantendo contatos, recolhendo opiniões e encaminhando a coordenação do assunto que, como vimos, resultou na apresentação da emenda Dante de Oliveira.
     Marcado pela fatalidade, o comício de 27 de novembro, com o nascimento das diretas, foi interrompido para se anunciar a morte do grande líder, vitimado por um câncer que, após luta feroz, tornou-se mais forte que ele.
Em Curitiba, um novo alento
     Somente em 12 de janeiro de 1984 se registra outra manifestação digna de nota, desta vez organizada em conjunto por todos os partidos de oposição. O encontro se deu na cidade de Curitiba-PR e contou com a presença de mais de 50 mil pessoas, inclusive do governador José Richa. Mas os defensores das Diretas ainda tinham muito que aprender e, em sua ingenuidade, deixaram-se envolver em um incidente que poderia ter trazido conseqüências fatais.
     Em certo ponto do comício, chega ao local o "deputado" argentino Juan Carlos Quintana, dizendo-se representante de Raul Alfonsin, recém empossado na presidência da República Argentina, primeiro presidente civil após a desastrada Guerra das Malvinas, que alijou os militares do poder. Era um apoio de peso e, assim, o "deputado" Quintana foi introduzido ao palanque e teve oportunidade de transmitir o apoio argentino à campanha das diretas.
     Foi um prato cheio para a mídia, que repercutiu o assunto com todo vigor. Foi, também, um achado para o governo, que manifestou-se pelos porta-vozes de plantão para reafirmar a existência de forças externas na campanha, comprometendo a soberania nacional.
     Com mais vagar, investigou-se depois na Argentina a procedência de tal "deputado" para descobrir o que se desconfiava: jamais existiu na Argentina um deputado com o nome de Juan Carlos Quintana e em momento algum o presidente Alfonsin mandou qualquer representante ou mensagem aos organizadores do encontro de Curitiba. O tal Quintana não passava de um agente duplo, infiltrado no comício para criar um clima de desestabilização.
     Melhor, entretanto, que tal fato ocorresse logo no início, pois foi possível ativar os sensores do alarme, evitando que outros incidentes, por certo mais graves, fossem provocados no futuro.
Em São Paulo, o
comício-monstro
     O primeiro grande teste viria a ser a concentração marcada para a praça da Sé, em São Paulo, em 25 de janeiro de 1984, data do aniversário da cidade. São Paulo é o município de maior população do Brasil e seu governador, Franco Montoro, um dos grandes líderes da oposição. Assim, o sucesso ou fracasso desse encontro seriam decisivos para as concentrações futuras em outra partes do país.
     Como já se disse, a imprensa – com exceção da Folha de São Paulo – e a mídia eletrônica de uma forma geral, procuravam ignorar a campanha das diretas e, quando se referiam a ela, era para registrar opiniões contrárias ou pôr objeções. O Estadão, por exemplo, alguns dias antes, publicou matéria especial discorrendo sobre o perigo das grandes concentrações e o risco de as lideranças perderem o controle sobre o público, provocando uma tragédia pela qual tais líderes seriam responsabilizados.
     Dando uma pequena ajuda, por meios não muito ortodoxos, o governo do Estado e a Prefeitura liberaram as catracas dos transportes públicos (ônibus e metrô) facilitando a movimentação das pessoas. Para atrapalhar, entretanto, uma chuva fina e intermitente caia desde a manhã e se prolongaria pelo dia e a noite.
     Acreditava-se na possibilidade de reunir umas 50 mil pessoas na praça da Sé mas os resultados superaram a expectativa. Em certo momento, a presença era estimada em mais de 100 mil pessoas. Por outro lado, considerando que o "showmicio" começou lá pelas duas horas da tarde e se prolongou até umas nove da noite, e calculando a rotatividade do público, pode-se estimar que, de início ao fim, passaram pela praça cerca de 400 mil pessoas. Era a consagração!
     Contrariando as "cassandras", esta manifestação, como de resto, todas elas, por toda a parte do país, transcorreram em clima de ordem, entusiasmo e alegria e em nenhum momento as lideranças perderam o controle da situação. A calmaria irritava o governo; democracia incomoda um bocado...
     À noite, a Rede Globo anunciava o acontecimento, dizendo que perto de 100 mil pessoas compareceram às "festividades do aniversário de São Paulo". Sobre as Diretas, o silêncio continuava total.
O movimento no
Rio de Janeiro
     É verdade que o governador do Rio de Janeiro, Leonel Brizola, aderiu rapidamente à campanha das diretas. Vale dizer, também, que a aproximação das várias lideranças para um trabalho conjunto não foi muito fácil.
     O comício que deveria ser realizado em 21 de março no Rio de Janeiro foi transformado em passeata, na qual o governador não compareceu. Ainda assim, 200 mil pessoas desfilaram desde a Candelária até a Cinelândia, acompanhados pelo senador Nelson Carneiro, Lula, Luís Carlos Prestes e vários outros políticos.
     Brizola em breve se convenceria que Diretas é bom pra tosse e não tem contra-indicações. Organizou e participou de grandioso comício na avenida Presidente Vargas, com um público estimado em mais de um milhão de pessoas. Como em outras tantas concentrações, lá estava novamente o cacique-deputado Mário Juruna, outro calouro entusiasmado com a campanha e que, sempre que podia, acompanhava as caravanas por este Brasil afora.
     O "comício do milhão" no Rio de Janeiro foi causar um incidente na distante África, mais precisamente em Marrocos, país que estava naquele momento sendo visitado pelo presidente Figueiredo e sua alegre comitiva. Ao ouvir um comentário do deputado Alcides Franciscato sobre o milhão de cariocas que foram exigir as diretas, Figueiredo teria dito: "E daí? Se eu estivesse lá, seriam um milhão e um..."
     Irrefletidamente, Franciscato, logo que pôde, passou essa frase aos jornalistas que acompanhavam a comitiva, certo de que tal revelação melhoraria a imagem do Presidente. Não melhorou e, de quebra, criou um tremendo problema ao deputado falastrão, que teve de desmentir tudo o que disse, para não ser desligado da comitiva.
Minas Gerais acorda
     Tal como Leonel Brizola, também o governador Tancredo Neves relutou um pouco em arregaçar as mangas e trabalhar em favor das Diretas-Já. Não compareceu às concentrações, especialmente a de São Paulo, em 25 de janeiro, quando poderia expor suas convicções a 100 mil pessoas. Apenas prometia que, no devido tempo, Minas Gerais também teria seu comício.
     E teve. Foi em 25 de fevereiro, em Belo Horizonte, e reuniu 300 mil pessoas, num universo populacional de 2 milhões. Foi um número respeitável e mostrou que Minas Gerais não estava alheia à campanha. Conta Ricardo Kotscho, o cronista das Diretas:
     "Mais de 300 mil pessoas tomaram a praça Rio Branco, em frente à rodoviária, subindo um quilômetro pela avenida Afonso Pena, até o Parque Municipal de Belo Horizonte, ocupando as ruas transversais, acotovelando-se nas janelas dos prédios, na maior manifestação cívica de Minas Gerais e do Brasil, como proclamou o governador de São Paulo, Franco Montoro, em seu discurso." (...)
     "A democracia é sempre uma festa, bancos fechados logo depois do almoço, repartições públicas dispensando seus funcionários. Quem haveria de querer ficar de fora, ouvindo o barulho que vinha das ruas, despertando a todos? (...)
     "Uma professora septuagenária, Ana Coaraci, que há 52 anos participou da campanha que deu direito de voto à mulher, uma data festejada ontem, disse com voz firme: ‘Hoje a mulher vem exigir o direito de votar para presidente da República. Queremos um Presidente que faça o mundo inteiro saber que o Brasil é dos brasileiros.’
     "O comício chega a seu ponto culminante, mas quem assume tudo é a atriz Bruna Lombardi: ‘O que está acontecendo hoje aqui é a vitória." O ator Raul Cortez critica o ministro da Justiça Abi Akel pelos processos instaurados ultimamente, com base na Lei de Segurança Nacional: ‘Que gente é essa que tem medo de artistas, de intelectuais? Nós continuaremos até o fim, juntos."
     E Ricardo Kotcho conclui: "Aquela história de que mineiro trabalha em silêncio acabou. Foi um barulho danado, bonito demais."
Em São Paulo, um milhão
e meio nas ruas
     A bola da vez volta a São Paulo. Em 16 de abril, uma enorme passeata sai da praça da Sé, andando em direção ao vale do Anhangabaú. Andando é força de expressão, pois os dois logradouros são próximos um do outro. É um enorme congestionamento humano, que tenta se deslocar de um ponto a outro pelas ruas estreitas do centro, passando pelo viaduto do Chá e chegando até o vale, um ponto de ligação entre as radiais que levam à zona sul e à zona norte da capital.
     Pela contagem da Polícia Militar, confirmada com outras avaliações feitas pela imprensa, cerca de um milhão e meio de manifestantes participaram desse aglomerado, representando 20 por cento da população. Não é um número desprezível, se considerarmos que, desta vez, nenhuma ajuda de transporte foi concedida e as pessoas se deslocaram espontaneamente, como puderam. Ricardo Kotsho registra o inusitado:
     "A chuva de verdade, agora parou um pouco. O sol arrisca vencer as nuvens escuras, uma professora, Maria Isabel Rodrigues, passa feliz da vida com seu cachorro Zumbi, na coleira, vestido de amarelo como ela. ‘Ele foi em todas as passeatas dos professores, agora tem o direito de passear pelas diretas também.’
     "Passa o cachorro, aparece um burro, um burro mesmo, desses de orelha grande – com uma manta em que se lê: ‘Gosto do cheiro de burros, mas prefiro as diretas.’ O nome do burro, segundo o contador Roberto Botaccin, é Delfim. Ao lado do boneco de Teotônio, uma caricatura de Maluf, tampando os ouvidos e perguntando: ‘Passeata aonde?"
Uma proposta indecente
      Neste ponto, nenhum dos jornais, rádios ou TVs podia mais ignorar os acontecimentos. Nem a poderosa Rede Globo que, a reboque dos acontecimentos, teve de aderir ao entusiasmo das multidões para não ficar marginalizada.
      Desde o início da campanha, contadas a grosso modo, mais de três milhões de pessoas já tinham ido às ruas, nos quatro cantos do país, exigindo que a emenda Dante de Oliveira fosse aprovada. Tudo na maior ordem e tranqüilidade.
     O presidente Figueiredo, que antes concordava com eleições diretas para 1990, agora fez uma pechincha: elas até que poderiam se realizar em 1988, criando-se, então, um mandato-tampão de quatro anos, a contar de sua saída, que ocorreria em 15 de março de 1985.
     Tal proposta até que era razoável. Por que, então, não foi aceita? De um lado, pela falta de credibilidade de quem a propôs. Desativada a vitoriosa campanha das Diretas, como garantir que, três anos depois, a promessa seria cumprida? De outro, porque suspeitava-se que o tal mandato-tampão seria preenchido pela prorrogação do mandato do próprio Figueiredo. E é óbvio que, em 1988, recompostas as forças da situação, seu sucessor seria um militar, eleito por via indireta.
     O certo, mesmo, era continuar a campanha até o último momento, quando o Congresso viesse a votar a emenda constitucional. Vamos embora, que esperar não é saber.
25 de abril, o dia
da decisão
     Finalmente, transcorridos todos os trâmites legais, é marcada a primeira votação, na Câmara de Deputados, para o dia 25 de abril de 1984. A condução do processo é feita pelo senador Moacir Dalla, presidente do Congresso Nacional (Câmara e Senado), embora a primeira votação, como dissemos, só ocorra na Câmara.
     Embora escolhida em função dos prazos regimentais, essa data traz uma feliz coincidência: foi em 25 de abril que estourou a Revolução dos Cravos em Portugal, quando a jovem oficialidade, recebida com flores pela população, derrubou uma ditadura que já durava 40 anos.
     Começa, em Brasília, a grande corrida em direção ao pódio. Os líderes da campanha fazem contato direto com deputados que irão tomar tão importante decisão. É um trabalho artesanal, corpo-a-corpo num esforço de convencimento.
     Um grupo de atrizes de primeira linha se desloca para Brasília e passa a visitar os parlamentares em suas próprias casas ou apartamentos, procurando arrancar deles a palavra de que não trairão a vontade da nação brasileira. É a novela das oito que sai da tela e passeia, ao vivo no lar de cada um.
     O governo não está preparado para enfrentar democraticamente essa avalanche e passa a tomar uma série de medidas, por meio de seus líderes no Congresso, e utilizando de todos os recursos de que dispõe, desde a palavra, até a aplicação de medidas excepcionais.
     O senador Moacir Dalla informa que, até a votação da emenda, ficam proibidas quaisquer manifestações, debates e reuniões no recinto do Congresso Nacional (Senado e Câmara). Flávio Marcílio, presidente da Câmara Federal toma idêntica medida, rebarbativa, pois o local é o mesmo, apenas as agendas é que diferem. José Sarney, presidente do PDS, telegrafa a todos os deputados do partido, convocando-os a comparecer à histórica sessão para dizer "não". O líder do partido na Câmara, Nelson Marchesan, mune-se para a batalha retórica.
     O presidente Figueiredo disse que não poderá haver eleições diretas em 1984 porque o Partido Comunista tem tamanha força que venceria as eleições. E vocês já pensaram, a volta da democracia com os comunistas no poder?
     Não explicou, porque não quis, que em toda História do Brasil, quando os comunistas, direta ou indiretamente participaram das eleições, nunca obtiveram mais de 10 por cento dos votos. E que, em 1945, lançaram candidato a Presidente o desconhecido Iedo Fiúza, porque Luís Carlos Prestes não desejou queimar seu nome, concorrendo à Presidência. E Prestes era ainda o Cavaleiro da Esperança, um mito junto ao eleitorado.
     Paulo Maluf não deixou por menos, ao destacar a quantidade de bandeiras vermelhas presentes aos comícios, dizendo que a bandeira brasileira é verde e amarela, explicação dispensável, porque todos já sabiam disso...
     Também ele não explicou, porque não quis, que as bandeiras vermelhas encontradas no comício eram todas de partidos devidamente legalizados, com direito a usar seu nome e seus símbolos. Aliás, tais bandeiras são brandidas até hoje e não se sabe de nenhum caso em que elas, por si só, tenham se constituído em ameaça à democracia brasileira.
Brasília declara guerra
ao Brasil
     Neste ponto, o presidente Figueiredo, havendo perdido de todo a força do convencimento, decidiu usar o convencimento da força: editou o Decreto 89.566, de 19 de abril de 1984 (Quarta-feira Santa, por coincidência, dia do aniversário de Getúlio Vargas, o ditador do Estado Novo), criando estado de emergência em Brasília e em dez municípios de Goiás, vizinhos à Capital.
     Não havia dúvidas de que, além de isolar Brasília da cidadania extravasada nas manifestações públicas, a medida visava principalmente constranger o Congresso, numa advertência do que poderia acontecer se as emenda fosse aprovada. A propósito, escreveu Newton Rodrigues, na Folha de São Paulo do dia seguinte:
     "A verdadeira emenda de Figueiredo é o decreto 89.566, de coação ao Congresso. Mussolini invadiu a Albânia em uma Sexta-feira Santa; o general-presidente preferiu a quarta-feira de trevas. Também, pudera!"
     Todo um plano de guerra foi traçado para evitar que Brasilia fosse invadida pelos brasileiros. Montado em seu cavalo branco, presente do general Figueiredo, o general Newton Cruz (Nini, para os íntimos), comandante militar do Planalto e da 11ª Região Militar, inspecionava as tropas de que dispunha para executar o estado de emergência.
     Eram 6 mil homens, "no mais portentoso desfile de tropas de que se tem notícia em Brasília", que saíram do "Forte Apache" (sede do comando) e invadiram os gramados do eixo monumental, com carros de combate e apoio de pára-quedistas trazidos do Rio de Janeiro por avião, preparados para uma guerra. Escreve Ricardo Kotscho:
    "Que guerra? – perguntavam-se todos – Só se Brasília declarou guerra ao Brasil. Sim, falava-se muito em guerra ontem em Brasília e, por um desses mistérios do inconsciente coletivo, remetia-se a imaginação à Argentina, ao trágico episódio em que os militares de lá declararam guerra à Inglaterra. Ao apear do cavalo branco e ajudar algumas criancinhas a montar nele, afável, sorridente, para pouco depois pronunciar sua ordem do dia aos berros – ‘voz de comando cumpre-se, não se discute’ – o general executor Nini lembrava o general Leopoldo Galtieri, que levou a Argentina à guerra."
     Fora de Brasília, cercando as entradas da cidade, tropas militares interceptavam ônibus de manifestantes, fazendo-os voltar aos seus lugares de origem. Também se encarregavam de interceptar e impedir a entrada de carros cujos ocupantes eram suspeitos de praticar democracia.
     A aplicação das medidas de emergência foi bem mais longe do que a Constituição de 69 permitia. Ao censurar o noticiário transmitido de Brasília, o governo federal colocava sob emergência o país inteiro, que não podia ser informado do que estava acontecendo.
     A TV Gazeta, de São Paulo, à véspera da votação, colocou no ar uma ligação telefônica com o vice-governador de São Paulo, Orestes Quércia, em que este, desde Brasília, transmitia uma "previsão do tempo", referindo-se obviamente à temperatura política. A emissora foi punida incontinente, ficando fora do ar por 24 horas.
     Já a Rádio Eldorado do grupo do Estadão, não se intimidou. No dia da votação da emenda, manteve sua programação habitual mas, de meia em meia hora, abria o "link" de Brasília para transmitir um rápido boletim, atualizando os acontecimentos. Não foi punida.
Diga sim, diga não
     "Diga sim, diga não" é o título de uma pequena peça escrita por Bertold Brecht para ilustrar a força da palavra e a influência que ela pode exercer para mudar os acontecimentos.
     Em 25 de abril de 1984, na sessão da Câmara Federal, representantes do povo tiveram a oportunidade de exercer esse poder e todos, mesmo os que se furtaram, deixaram a marca registrada de seu caráter, independentemente da posição assumida. Determinados alguns, indecisos outros, oportunista uma boa parte deles.
     O voto era aberto. Chamados, nome a nome, cada um declinava o voto próprio. Alguns abertamente, sendo alvo de aplausos ou vaias, mas convictos da posição que estavam tomando. Outros, timidamente, como envergonhados de si mesmos.
     "Estado por Estado – escreve Kotscho – a votação do ‘sim’ esteve sempre à frente do ‘não’, mas a vitória não passava de uma ilusão. Os pedessistas ausentes, na calada da madrugada, iam definindo seu resultado.
     "Os pedessistas que apareceram dizem um ‘não’ baixinho, envergonhados. Alguns não se dignam sequer a ir até os microfones, sussurram seus votos lá do fundo do plenário. Em compensação, os do PDS que votaram a favor da vontade nacional foram aplaudidos. (...)
     "Vossa Excelência faça o favor de se levantar – quase implora o presidente do Senado, Moacir Dalla, que dirigiu a sessão quando um deputado do PDS, Afrisio Vieira Lima, se escondeu atrás dos colegas para balbuciar um ‘não’ longe dos microfones."
A Vitória de Pirro
     Pirro II, rei de Epiro (Grécia), intentou uma invasão a Roma em 280 aC e saiu vitorioso, mas a confusão que seus elefantes fizeram foi tamanha que houve mais baixas em seu exército do que no exército inimigo. Daí surgiu a expressão "Vitória de Pirro", para indicar uma vitória com sabor amargo da derrota.
     A emenda Dante de Oliveira não passou por 22 votos. Apenas 22 votos. Dias antes, o governo, preocupado com a debandada dos seus parlamentares, pressionou a todos e, na falta de convencimento, aconselhou a muitos que ficassem em casa, deixando de votar. Foram esses ausentes que evitaram a derrota iminente do governo, mas, mesmo assim não mudaram o rumo dos acontecimentos.
     Nem todos os ausentes votariam pelo "sim". Havia também os adeptos do "não", que acharam preferível ausentar-se a ter de se expor ao seu eleitorado. Entre eles, a bancada malufista, de que são exemplo o presidente da Câmara, Flávio Marcílio e o próprio Paulo Maluf.
     Foram 113 os ausentes, destacando-se Edison Lobão, do Maranhão; Ernani Sátiro, da Paraíba; Thales Ramalho, de Pernambuco; Bonifácio de Andrada e Magalhães Pinto, de Minas Gerais; Alcides Franciscato, Cunha Bueno e João Mendonça Falcão, de São Paulo; Ruben Medina, do Rio de Janeiro; e outros tantos, cujos nomes caíram no ostracismo e que nem vale a pena citar, pois ninguém se lembraria deles, mesmo. Dos que compareceram, apenas três se abstiveram de votar: Oscar Alves, Reinhold Stephanes e Renato Johnson.
     A emenda não passa, mas os "elefantes" do general Figueiredo fazem um estrago bem maior que o esperado, causando mais danos ao PDS que à oposição.
     A "Tomada da Bastilha" – para usar uma expressão predileta de Ulisses Guimarães – viria a ocorrer meses mais tarde, no mesmo cenário, com o elenco ampliado, mas representando uma peça diferente: nas eleições indiretas, com o voto do Colégio Eleitoral, o candidato da oposição, Tancredo de Almeida Neves vence e o candidato governista Paulo Salim Maluf perde.
     Neste momento, "Explode um Novo Brasil", como diz título do livro de Ricardo Kotscho que reproduz as crônicas da campanha. Daqui pra frente, a Nação brasileira não mais admite ser conduzida. Enganada, algumas vezes, por certo que foi; mas conduzida, nunca mais será.
     Já se viu por aí que esse episódio das eleições presidenciais também merece um capítulo aparte. E é o que vamos fazer em seguida.