24 junho, 2013

Brasil: os perigos do antipartidarismo - Jornal Expresso

As manifestações no Brasil começaram em defesa dos serviços públicos. Mais concretamente, contra o aumento das tarifas dos transportes públicos e em defesa de um passe social gratuito. Não começaram contra o papel do Estado na economia ou a favor da privatização dos transportes. Apesar de apartidário, o movimento começou com uma agenda tipicamente cara à esquerda: a defesa de serviços públicos gratuitos prestados pelo Estado, através da provisão pública conseguida pelos impostos.
A esta agenda juntou-se a crítica às despesas delirantes no Mundial de 2014. Como se vê pela primeira exigência, não se tratava de uma crítica ao investimento público, mas uma crítica às prioridades definidas por esse investimento. Não se dizia que esse dinheiro estava a ser "retirado à economia" ou que o Brasil estava a "viver acima das suas possibilidades". Dizia-se que esse dinheiro devia ir para a saúde, a educação e os transportes públicos. E, tendo em conta as derrapagens a que se têm assistido, criticava-se o facto dos dinheiros públicos estarem a ser canalizados para a meia dúzia que ganha com este sorvedouro de recursos em vez de ser redistribuído, através dos principais pilares de um Estado Social, pelo conjunto da população. Ou seja, criticava-se que alguns vivessem em cima das possibilidades dos outros.
Mesmo os analistas e colunistas brasileiros perceberam que o protesto nascia dentro do eleitorado natural do PT e do resto da esquerda (sobre a realidade social que o potenciou, já aqui escrevi ) para depois se estender a toda à sociedade. Por isso ele assustou tanto o governo de Dilma Rousseff, que, pelo menos por agora, deu sinais de ceder parcialmente em grande parte das reivindicações dos manifestantes. Para começar, anunciou a redução das tarifas de transportes, a elaboração do Plano Nacional de Mobilidade Urbana, que 100% dos recursos do petróleo irão para a educação e prometeu milhares de médicos estrangeiros para ampliar o atendimento do Sistema Único de Saúde. Não sei se cumprirá e duvido que faça de uma outra exigência, o combate à corrupção, uma verdadeira prioridade. Mas é sintomática a necessidade de tentar dar resposta às exigências políticas dos manifestantes.
O movimento começou por ser visto pelo mundo mediático brasileiro, bastante ligado à velha elite do país, como sinal de "baderna". Mas, à medida que foi ganhando dimensão, o discurso das televisões foi mudando. E, perante a vitória que conseguiu, toda a oposição, incluindo a de direita, para quem a sua principal reivindicação (passe gratuito) só pode ser esdrúxula, apanhou boleia do movimento. Incluindo a extrema-direita saudosista dos tempos da ditadura e impregnada de um violento racismo social.
Aproveitando o carácter assumidamente apartidário do movimento, tentou, sendo nisso acompanhada por muitos populares despolitizados, transforma-lo em movimento antipartidário e até antidemocrático. Nas enormes manifestações de comemoração da vitória conquistada, que juntaram um milhão de pessoas nas ruas do Brasil, grupos de jovens de extrema-direita atacaram militantes de partidos de esquerda (que estiveram, ao contrário deles, desde a primeira hora, no movimento), militantes do PT críticos do governo de Dilma e até ativistas de movimentos sociais (dizendo que, no fundo, eram de partidos). Gritaram frases como "o povo unido não tem partido". Queimaram bandeiras de partidos de esquerda e bateram em qualquer pessoa que se vestisse de vermelho.
A coisa ganhou tais dimensões que o Movimento Passe Livre (que iniciou e liderou esta contestação e que, em Brasília, já conseguira, desde 2006, o congelamento das tarifas e a gratuitidade de transportes para estudantes) desvinculou-se dos protestos em São Paulo e deixou bem claro que, sendo um movimento apartidário, repudiava todos os discursos antipartidários. E não aceitava estar a eles associado.
Os movimentos inorgânicos têm várias virtudes. Eles correspondem a uma realidade mais próxima daquela que a sociedade vive hoje. Desenquadrados, são muito mais amplos e capazes de mobilizar as pessoas. Pudemos assistir a isso mesmo nas primeiras manifestações do "Que se Lixe a Troika". Mas, no tempo que vivemos, eles são também mais fáceis de manipular por agendas políticas que lhe sejam estranhas. Uma delas é o discurso contra os partidos políticos. Que, começando por ser um discurso que parece benigno - por mais democracia e participação - não precisa de muito para se transformar num discurso contra a própria democracia. Que, defendendo mais democracia participativa, rapidamente resvala para o ataque à democracia representativa em favor de democracia nenhuma. É que eu lembro-me de várias ditaduras sem partidos (ou com apenas um partido, o que vai dar ao mesmo), não me lembro de nenhuma democracia onde os partidos não existam.
Os manifestantes de extrema-direita exibiram cartazes onde se podia ler: "O meu partido é o Brasil". Também Mussolini e Salazar achavam que os seus partidos eram Itália ou Portugal. O subtexto deste discurso é simples: só há um interesse legitimo para um país. A divisão, a discórdia, as alternativas, as conflitos de classe ou ideológicos, ou seja, a própria base da democracia, tudo isso é falso. É este o principal argumento de qualquer ditadura: a representação da diferença é dispensável porque o interesse de todos é apenas um. Que alguém, sozinho e esclarecido, se encarregará de representar. Quem deles discorde ou serve interesses próprios ou interesses estrangeiros.
Todos os discursos de ódio aos partidos - e não de crítica ao seu funcionamento - e aos "políticos" - tratando todos por igual, independentemente da sua honestidade e competência - criam o caldo antidemocrático pelo qual muitos esperam para impor a sua vontade sem oposição. E os movimentos inorgânicos, sem agenda, liderança ou enquadramento político, sendo positivos em muitos aspetos, são extraordinariamente permeáveis a este discurso.
Quando saí do Bloco de Esquerda, um dos principais elogios que recebi foi o de ter passado a ser "independente" e ter deixado de ser, coisa asquerosa, militante de um partido. Devo dizer que o tomei este elogio como um equívoco. A suposta independência que me era elogiada é falsa. Não sou, não quero ser, independente. Dependo de uma tradição histórica. O mundo não começou quando eu comecei a pensar. O que penso é resultado de um acumular de reflexões e lutas de outros. Reflexões e lutas ideologicamente enquadradas. Dependo de uma cultura política. Que dentro e fora dos partidos se distingue de outras. Não sou, não quero ser, uma borboleta que salta de flor em flor, buscando a agenda mais popular ou simpática de cada corrente política. A minha coerência tem história e séculos de inteligência. Vai mudando, vai aprendendo com derrotas e vitórias. Converge e diverge de gente que acompanho em muitas lutas. Mas não é só minha. Não resulta de uma reflexão solitária e descomprometida. Não é, nunca será, independente.
Penso pela minha cabeça. Como pensam ou deviam pensar os militantes de partidos. Critico os partidos por promoverem uma cultura de rebanho, onde o pensamento engajado mas livre, coerente mais heterodoxo, não tenha lugar. Mas não confundo isso com o individualismo reinante, em que cada cabeça se julga autossuficiente. Não aceito o discurso apolítico, onde as ideologias, como tradições históricas portadoras de grandes narrativas, são anuladas pela indignação momentânea e pela lógica do supermercado - escolho cada produto, a cada momento, conforme me convém. Ou onde a simpatia individual que cada personalidade política me merece torna indiferente o que ela defende. Onde cada um acha que não precisa de pessoas e estruturas que o transcendam para os seus combates.
Mas, sobretudo, abomino o discurso que olha para militantes, sindicalistas e ativistas como gente descerebrada e sem sentido critico ou suspeita automática de oportunismo. O discurso que reduz a vida política a pequenas explosões de cidadania e likes no facebook corresponde a uma cultura que despreza o comprometimento. E que anda ao sabor da corrente de cada momento. Até se afogar numa inundação de populismo e demagogia. Não, eu sou militante. Acontece não ter partido, porque não tenho nenhum onde esse comprometimento faça hoje sentido. Mas acredito na militância cívica. E, dentro dela, na militância partidária.
O Movimento Passe Livre, assim como o "Que Se Lixe a Troika", o Congresso Democrático das Alternativas e tantos movimentos sociais apartidários (que incluem e devem incluir militantes partidários, com direito à cidadania plena), foi um movimento político. Com uma agenda e um discurso coerentes. Isso não é contraditório com a recusa da partidarização dos movimentos sociais, um dos principais problemas de muitas democracias, em especial a portuguesa. Afoga-lo numa maré niilista de um imaginário "povo sem partido", onde cabe um fascista e um democrata, o que quer uma democracia mais exigente e o que defende a sua destruição, é contribuir para o silenciamento futuro do povo e da sua democracia. As eleições podem parecer, por vezes, uma farsa. Mas ainda é o único momento onde a minha palavra, a de um desempregado e a de Ricardo Salgado, valem exatamente o mesmo: um voto cada um. Em nome da regeneração democrática e dos partidos, não as dispenso. Não atiro o bebé fora com água do banho.
Correção: na quinta feira  atribui à Globo um processo de manipulação dos telespectadores contra as manifestações. Na realidade, o programa que referi era da Record.