Artista
tornou-se uma espécie de abrigo para todos os sobreviventes de
expressões do Brasil rural e profundo de um outro tempo e ética
Inezita
Barroso, a Dama Caipira, era uma espécie de abrigo, um refúgio de
expressões culturais que eram depositárias privilegiadas da identidade
do País. A ela recorriam formas em vias de desaparição, duplas e
cantores e arquivos vivos que sobreviveram à blitzkrieg modernizadora de
diversas décadas.
com Paulo Autran.
Ultimamente,
em sua casa em São Paulo, com seus 22 passarinhos de gaiola (atestado
de sua fidelidade para com o ideário caipira), ela ainda gravava
participações no programa Viola Minha Viola (o mais longevo do País),
como se sua existência representasse um bunker contra a pasteurização, o
nivelamento cultural. Enciclopédia viva de uma época.
com Moraes Sarmento.
Opunha-se
à presença de tecladistas em seu programa, além de alfinetar os
conglomerados culturais. “É ridículo ver um personagem do campo falando
com sotaque carioca”, ela disse, há 5 anos. Era confortador vê-la ali
resistindo, procuradora de uma ética desaparecida, como uma Palmirinha
da música caipira, uma doutora da roça.
Ainda
assim, Inezita não era uma entusiasta da repetição passiva das formas
tradicionais; seu rosto se iluminava quando se deparava com um artista
que, ancorado nas formas arcaicas, transcendia seu invólucro e se
projetava para a frente. Sua própria carreira como cantora se valeu
dessa dialética transformadora: ela se destacou cantando Ronda, de Paulo
Vanzolini, além de Noel Rosa e Ary Barroso. Sabia que o problema da
afirmação nacional não era de fronteira, mas de autenticidade.
Nascida
na Barra Funda, antigo bairro fabril de São Paulo, ela entretanto tinha
alma de interior, tinha um destino de campo e mato. Também atriz e
formada em biblioteconomia, cresceu artisticamente com a
profissionalização do rádio e da TV no Brasil. E sonhava com o dia em
que orquestras de moda de viola invadissem todas as cidades do País.
Como cantora, experimentou o sucesso, mas sempre o preteriu à condição
de divulgadora cultural, levando gerações a conhecerem as obras de
Cascatinha e Inhana, As Irmãs Galvão, Pedro Bento e Zé da Estrada,
Milionário e José Rico, Tonico e Tinoco, entre outros.
Mas
não era onívora, certas coisas ela não engolia. “Essa música moderninha
de hoje, que chamam de sertaneja, não tem valor. É sempre a mesma
coisa, com a mulher que abandonou o marido. Com o agravante que só a
tocam no mesmo ritmo, parece um realejo”, disse ao repórter Lucas
Nobile.
Em
sua biografia, escrita por Carlos Eduardo Oliveira e publicada no ano
passado, Inezita contou como se decidiu pela vida artística após
assistir a um show de Carmem Miranda e revela que teve de enfrentar a
resistência dos pais conservadores. Vinha da classe média alta, e sua
disposição de levar a vida com cabelos curtos, violão no braço e em
rodas de viola com trabalhadores rurais chocou a família. Nas fazendas
de familiares, colhia os ritmos (catira, cateretê, chamamé) e as canções
que gravava e celebrizava (ou simplesmente introjetava na mente para
uso futuro), como Moda de Pinga.
O
curador Teixeira Coelho, em uma definição conceitual de cultura,
afirmou o seguinte: “O melhor resumo da ideia de cultura, e que poucas
políticas culturais se dispõem a aceitar, é aquela que apresenta a
cultura como uma longa conversa. Uma longa conversa entre tudo o que é
cultura, entre todos que movem a cultura. Uma longa e franca conversa. A
melhor ideia de liberdade é essa ideia de conversa. Essa, na verdade, é
a melhor ideia de liberdade”. Em sua conversa de uma vida, Inezita
cumpriu essa ideia à perfeição.
Inezita Barroso foi um bunker cultural, uma casamata de Resistencia.
Saúde, Sorte e $uce$$o: Sempre.