Facebook

Twitter

08 janeiro, 2025

revista piauí

 


Em fevereiro de 2024, um grupo de 46 magistrados do Tribunal de Justiça de Rondônia recebeu mais de 1 milhão de reais de salário mensal em suas contas bancárias. Os contracheques astronômicos, muito acima do teto constitucional de 44 mil reais, se devem a uma sucessão de penduricalhos reunidos na rubrica “vantagens eventuais” – uma definição propositadamente genérica, a esconder privilégios tão arraigados quanto injustificáveis. “O estado brasileiro é uma máquina de criar e distribuir benesses”, define o economista Bruno Carazza no livro O país dos privilégios – Volume 1: Os novos e velhos donos do poder.

Na obra, Carazza se propõe a atualizar o conceito de patrimonialismo criado pelo jurista Raymundo Faoro no livro Os donos do poder: Formação do patronato político brasileiro, publicado em 1958. Se Faoro destrinchou as raízes do “estamento”, os nobres e burocratas que orbitavam em torno da coroa portuguesa (e, mais tarde, do império brasileiro) em busca de privilégios, o economista atualiza o conceito para os tempos atuais, com foco, neste primeiro volume, nas carreiras jurídicas (sobretudo o Judiciário e o Ministério Público), políticas (Congresso) e tributárias (Receita Federal).

Carazza demonstra, com uma riqueza de dados estatísticos e fatos históricos, como o “estamento” brasileiro minou as bases de um Brasil moderno, mais justo e igualitário – aquele país prometido na Constituição de 1988. Por meio de um intenso lobby nos corredores de Brasília, leis foram desvirtuadas e portarias surgiram na calada da noite para eliminar qualquer tipo de prudência orçamentária na distribuição de benesses. O autor demonstra com detalhes como o Judiciário e o Ministério Público mantêm uma corrida frenética em busca da maior quantidade possível de penduricalhos nos próprios salários. Vale tudo: lobby no Congresso, “jabutis” em projetos de lei, canetadas que contrariam julgamentos anteriores do próprio Judiciário.

O resultado é um estado inchado, perdulário, distante das necessidades mais urgentes da população. Em um país no qual tetos viram pisos salariais e alguns rendimentos, como no caso do TJ de Rondônia, chocam pela completa desconexão com a realidade brasileira, a obra de Carazza traz para o debate público um problema-tabu essencial, que ajuda a explicar a desigualdade social pornográfica do Brasil.

Há uma cena em V13 – O Julgamento dos Atentados de Paris, livro do francês Emanuel Carrère, em que uma vítima do ataque terrorista na casa de shows Bataclan pede perdão ao tribunal que julga seus algozes. O rapaz, que tinha 21 anos à época do atentado – que ocorreu em 2015 e incluiu ainda ataques no Stade de France e nas ruas da capital francesa –, saiu sem danos físicos da tragédia, mas por muito tempo não conseguiu tocar a vida, em razão de um trauma que só compreendeu três anos depois, na terapia.

Na noite do atentado, o rapaz empurrou, pisoteou corpos, fez de tudo para sobreviver, enquanto jovens como ele eram varados por metralhadoras. A culpa por ter saído fisicamente ileso o atormentava – por isso o pedido de desculpas ao tribunal. Um pouco antes de decidir pelo gesto inusitado, o mesmo rapaz já tinha se emocionado quando outra vítima que quebrara as costelas naquela noite minimizou sua dor, dizendo que duas costelas quebradas não eram nada. “Pode ter sido você quem passou por cima de mim, pode ter sido outra pessoa, nunca vamos saber, mas se foi você, quero que saiba.”     

Essa passagem ocupa apenas uma página e meia das 224páginas do livro. É uma história dentre tantas trabalhadas pelo autor, que se propôs a assistir todas as sessões do tribunal ao longo de nove meses, no Palácio da Justiça, em Paris. Inicialmente, Carrère escreveu crônicas semanais para a revista Le Nouvel Observateur. Dois terços do livro são feitos destas crônicas, agora ampliadas. Ao longo do trabalho notável que excede a crônica judiciária, Carrère pontua relatos íntimos dos participantes do julgamento para explorar as complexidades do bem e do mal, e as imprecisas fronteiras entre eles. Retrata figuras ímpares – como Nádia, que dispensa o desejo de vingança pela morte da filha Lamia, de 30 anos, ao refletir que, como Lamia, os assassinos foram levados à escola de mãos dadas por suas mães; ou o pai que perdeu o filho assassinado e começa a se corresponder com o pai que perdeu o filho assassino. Juntos, escrevem um livro: “Só nos restam as palavras.”     

Há também os catorze réus – entre eles Salah Abdelaslam, o terrorista que desistiu de se matar explodindo uma bomba que carregava. Ele, seus advogados, os advogados das partes civis, os acusadores e o juiz, são apresentados de maneira descritiva, mas também sob a lente mais introspectiva do autor. Em seu exercício de empatia, o autor por vezes parece um camaleão que assume as cores de quem estiver com a palavra – e até brinca com isso. Mas é na forma como revela tensões e joga luz nos silêncios que o livro se eleva.

Tudo se desdobra dentro de um tribunal, dentro de uma capital europeia, dentro de um país de passado imperialista, atingido por radicais islâmicos que clamam vingança ao Ocidente. Poderia ser Bélgica, Alemanha, mesmo Inglaterra, mas estamos falando da França, onde 130 pessoas foram assassinadas com tiros e bombas naquela sexta-feira, 13 de novembro de 2015 (daí a referência do título a V13, de Vendredi, sexta-feira em francês). É um julgamento que poderia ser insuportável para o leitor comum, mas que se torna um acontecimento literário. É uma busca pela verdade dos fatos que não renuncia ao rigor jornalístico, revelando os aspectos mais humanos e subjetivos do processo sem tabus, permitindo ao autor, até surpreendentemente, colocar-se no lugar do perpetrador. Que ironia, um resfolego no ato de julgar.

Esta foi uma obra literalmente julgada pela capa. Em julho de 2024, enquanto passeava pela feira do livro de São Paulo, vi este romance exposto em um dos diversos estandes. A arte do rosto que figurava na capa me surpreendeu pela expressividade e beleza. E o que poderia ser um arrependimento, por ter comprado um livro de procedência duvidosa, resultou em um grande acerto.

O romance era A outra princesa, e o rosto na capa era o de Sarah Forbes Bonetta, protagonista da história, uma princesa iorubá que foi sequestradapela corte inglesa e tutelada pela rainha Vitória. A obra, baseada numa história verdadeira, descreve a trajetória de Sarah desde a infância até a vida adulta, abarcando seu amadurecimento e os percalços que enfrentou: perda parental e de identidade, solidão, abandono forçado de seu território, violência física e psicológica, entre outros aspectos.

É uma obra comovente, e me emocionei diversas vezes ao lê-la. A americana Denny S. Bryce usa o gênero do romance para retratar o processo predatório que os impérios europeus promoveram durante séculos no continente africano, e as repercussões do imperialismo nas sociedades africanas daquele período. Tudo isso pelo olhar de uma mulher negra, que foi vítima da lógica colonialista europeia, que buscava conquistar mais domínio e riqueza em seu território. Sarah passa muito tempo enxergando a coroa inglesa como sua grande salvadora. Mas, ao longo da história, ela se transforma e percebe que o lugar que imaginava ser sua salvação era na verdade o grande causador de todo o sofrimento que a acompanhou durante boa parte da vida. 

A conexão entre a ficção e a realidade são o par perfeito para a construção da obra, que em nenhum momento perde o senso crítico agudo ao apontar como eventos do passado até hoje submetem o povo africano a inúmeros conflitos. A história ainda entrega vários aspectos da cultura iorubá, para mostrar que, apesar de Sarah ter sofrido um processo de colonização, a sua essência iorubá-africana não se perdeu. Publicado em 2023, a obra só chegou em solo brasileiro em fevereiro de 2024. Lê-la mantém vivo na memória o protagonismo de pessoas negras ao longo da história.

Meu Refrão (Una Mia Canzone) é uma das faixas do álbum Chico Buarque de Hollanda na Itália, lançado em 1969, que traz algumas das primeiras canções do artista vertidas para o italiano. Naquele ano, Chico estava exilado na Europa devido à radicalização da ditadura militar no Brasil depois do Ato Institucional nº 5, o AI – 5, publicado no final de 1968. A letra conta a jornada de um jovem autor, desde quando brincava de bola na escola até as primeiras lições de início da vida adulta. Na canção, Chico escreve um pouco de si, e ao fazê-lo logo depois de um decreto do governo que cerceara as liberdades individuais, dá aos ouvintes e leitores uma forma de valorizar a liberdade artística.

Nessa perspectiva, o livro Bambino a Roma pode ser visto como a versão literária amadurecida da mensagem embrionariamente presente em Meu Refrão (Una Mia Canzone). Digo isso não só pelo contexto italiano do livro, mas principalmente pela proposta do autor de olhar para as histórias de sua infância a partir de uma perspectiva de quem acaba de completar 80 anos, e, a partir disso, tecer reflexões profundas, críticas repletas de uma saudade nostálgica. Aos 9 anos, Chico foi morar em Roma com sua família, após seu pai, o historiador Sérgio Buarque de Holanda, ser convidado para ministrar aulas na Universidade de Roma, de 1953 a 1954. Foi um período curto, mas que marcou a vida do compositor a ponto de ele querer olhar novamente para esse momento mais de setenta anos depois.

Afirmar que a obra é um livro de memórias é um equívoco. O leitor tem diante de si diversas histórias e casos curiosos de sua breve infância romana, é verdade, mas essas lembranças têm uma proposital atmosfera onírica com situações claramente ficcionalizadas, como se produzidas pela imaginação de uma criança pouco preocupada com a veracidade e coerência cronológica dos fatos – aos quais o autor octogenário dá coerência narrativa. Por isso o texto reafirma a potência e o talento ficcional de um escritor consagrado, vencedor do Prêmio Camões, em 2019.

A imagem da capa é o pequeno Chico em sua bicicleta, que ganhou de aniversário na Itália e fez questão de levar ao Brasil. Enquanto ele percorre as ruas de Roma com a bike, somos quase que levados na garupa, pelos labirintos dessa memória ficcionalizada. Chico nos transporta ao dia que dançou “Hi‐Lili, Hi‐Lo”, com a atriz de Hollywood     Alida Valli, que era mãe de um colega de escola. E quando se espantou, orgulhoso, ao ver na estante de uma livraria um exemplar de Raízes do Brasil: Alle Radici del Brasile. “É o livro do meu pai!”

Ao final de um dos capítulos, Chico conta que recebeu de presente de sua mãe um diário para registrar suas memórias romanas, ideia que ela própria dera. Mas, por ser um diário muito infantil com capa e desenhos de borboletas, ele o presenteou à sua irmã caçula, que estava na escola maternal. Com isso, largou a mão do registro. “No futuro a imaginação cobriria as lacunas da memória e os acontecimentos reais se revezariam com o que poderia ter acontecido.” Essa é a essência deste romance, que é fluido e apaixonante, como um passeio de bicicleta pelas vias e praças de Roma. No refrão de Una Mia Canzone, Chico pede que quem o ama cante junto com ele. Ler Bambino a Roma é cantar e celebrar um dos maiores artistas do país.

Era uma tarde de março quando me sentei em frente à psiquiatra para encontrar uma medicação capaz de resolver minha indisposição física e mental. Durante a consulta, ouvi dela a indicação de um livro “feito para minha situação de vida”, ou seja, um jornalista, já, mas que ainda não defendera a monografia. O título da obra reverberou. Querido estudante negro . “Eita, é pra mim”, pensei.

O livro da escritora, pesquisadora e ativista Bárbara Carine, lançado em fevereiro de 2024, é escrito em formato de cartas da protagonista para um amigo também negro de melhor condição financeira. A autora escreve o que ela mesma chama de “autobiografia ficcional” para transmitir ao leitor as tensões sociais e raciais enfrentadas pela personagem. Não importa tanto quais das situações Carine realmente vivenciou, e sim que todas as tensões nas cartas são vivenciadas por pessoas negras. As ocorrências vão de piadas no jardim de infância sobre o cabelo da protagonista até o isolamento de uma universitária em meio ao mar branco e elitista de estudantes que não enfrentam a carga de trabalhar, estudar, pagar contas e tentar sobreviver (tarefa difícil, visto que a taxa de mortalidade de homens negros é quatro vezes maior que a de homens brancos).

Com exceção das duas últimas cartas, Carine recorre à simplicidade nas palavras e à sutileza para retratar as situações de um “eu coletivo”. A remetente não precisa de um excesso de detalhes para explicar a razão pela qual um amigo dela no aeroporto é submetido a uma revista aleatória, ou a falta de representatividade negra no corpo docente das universidades. O motivo a gente já sabe. O sabor das cartas não amarga, somente, a boca do leitor negro. A psiquiatra que me indicou o livro é branca, e o leitor branco também é convidado a entender o regime de sobrevivência da população negra num país onde a luta para não morrer aumenta a cada dia, sem perspectiva de vitória do povo preto. 

A chegada da protagonista ao patamar de mestra e doutora em Ensino de Química, e professora adjunta do Instituto de Química da Universidade Federal da Bahia (UFBA), não é um final feliz do livro. Para corroborar tal argumento, a própria autora renuncia à vitória individual ainda na apresentação, com o seguinte trecho:

É importante dizer que este não é um livro sobre superação; não há como ser negro em um país tão racista como o nosso e superar a ferida colonial aberta em nós. Engana-se o negão que diz “cheguei lá” e acha que tem uma história de superação para contar e inspirar outras pessoas. Me diga, você chegou lá onde? Será que essa pessoa percebe que se sentou à mesa na sala de jantar da casa-grande enquanto os companheiros, as pessoas que ele mais ama, se alimentam junto aos animais na senzala? Não! Não houve superação; houve incorporação ao sistema que machuca e oprime. A diferença é que agora ele está mais pertinho para ser estudado, vigiado e controlado.

Definitivamente não quero ser o preto na casa-grande enquanto a base de onde vim não desfrutar das pequenas vitórias da luta nossa de cada dia. Essa é apenas uma das várias reflexões proporcionadas pela leitura das cartas de Bárbara Carine.

“O sentido de ler é o fato de não existir sentido em ler. É prazer.” O prazer da leitura é justamente o que Caetano W. Galindo nos desperta ao percorrer os 99 micro-capítulos de Lia, um caleidoscópio de instantes que formam uma unidade. É um daqueles livros que não se encaixam em nenhum escaninho – e para os leitores mais curiosos, isso já vale uma boa espiada.

É o primeiro romance de Galindo, que, além de escritor, é um dos tradutores mais apreciados e demandados do mercado editorial brasileiro. Lia é um conjunto de instantâneos da vida, com ideias engraçadas, pensamentos profundos, dores e tristezas, e um apanhado de histórias de mulheres aleatórias que se chamam Lia, que podem ser uma só ou muitas, tanto faz. Talvez Lia seja o próprio Galindo – reservado que é, se camuflou no meio das historietas da protagonista, e faz delas sua declaração de princípios. Dá pra ler o livro de trás pra frente ou pegar do meio pro fim, ler salteado, e assim vai. Lia é como um álbum de retratos de várias mulheres: velha, jovem, bebê, semiviva ou semimorta, estirada numa calçada de Curitiba, ou uma mãe que já partiu e deixa uma casa vazia para o filho recolher “os trecos” e regar as plantas . 

“Ler sobre algo, ver uma cena, olhar um quadro é prestar atenção. De verdade. É tirar alguma coisa da esfera do mundo e do fluxo do tempo e realmente olhar/ouvir, o que a gente quase nunca faz na vida real. E quando você dedica atenção de verdade a alguma coisa, quase tudo é bonito e de certa maneira quase tudo se revela cheio de sentidos”, escreve o autor lá pelo meio do livro. Ecoando essa declaração, Lia trata temas profundos sem burocracia e temas banais com o devido respeito. Um bebê vendo pela primeira vez o cubo de gelo mergulhar num copo d’água. Um bolinho com café na cozinha de casa. Um mero instante do passado que nos faz pensar no que vale a pena. Nessa toada, Galindo nos faz olhar com carinho para a nossa própria rotina, essas pequenas belezas do cotidiano, e nos leva a repensá-las com generosidade e leveza.

E já que estamos no fim do ano, surrupio aqui uma ideia do livro: Se na hora da sua morte, te dissessem que você tem direito a mais alguns minutos de vida se – e apenas se – você escolher uma música para ouvir, sendo que a prorrogação da sua vida terá a exata duração dessa música. Um arremate de beleza, “a morte protelada pelo tempo de uma música.” Qual música seria? (A do Galindo é uma linda canção, que eu não conhecia, mas já incluí na minha playlist.)

Em novembro de 2023, me encontrei com César Aira em Buenos Aires para entrevistá-lo e fazer seu perfil para a piauí . A obra de Aira, composta de mais de cem livros, é notoriamente extensa, e, na preparação para o encontro, me deparei com alguns livros seus dos quais nunca tinha ouvido falar. O mais peculiar entre eles foi um que não costuma ser contabilizado em sua produção oficial. Se chama Argentina: Las Grandes Estancias.

Lançado em 1995 por Rizzoli New York e Ediciones Brambila, organizado e editado por Tomás de Elia e Juan Pablo Queiroz, o livro discorre sobre a história de 22 propriedades latifundiárias argentinas do século XIX que, até a publicação do livro, permaneciam nas mãos de herdeiros das famílias ruralistas. É uma espécie de livro de mesa de centro, cheio de fotografias de paisagens suntuosas e casarões decorados: um pátio com rede e banquinho iluminados no S ol do crepúsculo; uma sala de estar com lareira e paredes revestidas de pedras e ancestrais europeus; uma cozinha rústica com prataria dourada. As imagens oscilam entre o lírico e o kitsch (uma das fotos mostra Jackie Kennedy de echarpe e óculos escuros, em 1966, montada a cavalo na estância de San Miguel). Aira assina os textos do livro, abordando os detalhes históricos de cada propriedade. São textos curatoriais relativamente convencionais, mas vez ou outra nos lembramos de quem está escrevendo. Como no caso da descrição de Los Alamos , casarão de propriedade da família Aldao Bombal, localizada ao S ul da província de Mendoza:

O casarão havia sido construído como forte de fronteira em 1830, com paredes grossas de adobe, pátio interno, janelas com barras de ferro forjadas à mão, e um fosso defensivo para protegê-las de invasões indígenas. Ao longo daquele século, a estancia havia resistido a duas invasões, que incluíram sequestros de mulheres e roubo de gado. Segundo a tradição oral, um cacique foi enforcado no pátio principal da casa em represália. Um destes ataques, em 1838, que pegou toda a região, foi registrado em vários desenhos e óleos pelo pintor alemão Johann Moritz Rugendas, na época de passagem pela província.

De início, eu tinha estranhado a participação de Aira em um projeto tão convencional (nenhuma das pessoas que entrevistei parecia ter uma teoria a respeito, e a maioria nem conhecia o livro). Mas ao ler os textos, me dei conta de que a prosa do autor – impessoal, fluida, e leve – era perfeita para um livro desse tipo. Uma das qualidades de Aira é justamente narrar tudo do mesmo jeito: Rugendas é um dos personagens de seu romance Um acontecimento na vida do pintor-viajante , e as alucinações do protagonista na ficção são narradas com a mesma limpidez e graça que ele usa para descrever a história dos casarões.

Toda essa digressão aireana serve para dizer que reencontrar O congresso de literatura , lançado no Brasil neste ano pela Fósforo num box junto a três outros romances seus, foi uma experiência reveladora. A primeira vez que me deparei com o livro – em 2011, numa livraria de Buenos Aires – a premissa de um tradutor que decide arregimentar um exército de clones do escritor mexicano Carlos Fuentes me pareceu pernóstica, mais até pela insistência do vendedor fanático do que pela história em si. Mas, depois de mergulhar na obra de Aira, me dei conta de que a vitalidade do livro reside justamente em sua mistura promíscua entre erudição e deboche, entre metaficção cerebral e cinema B. A acessibilidade e a graça da prosa preparam o leitor para qualquer coisa – Aira tem um poder inimitável de naturalizar eventos incríveis, e de imbuir eventos mundanos de estranheza. Quando um problema no processo de clonagem gera uma tragédia com minhocas azuis gigantes, já estamos convertidos ao desconcerto narrativo tão comum em suas obras. O livro é uma boa porta de entrada para quem nunca leu a obra, ainda que qualquer livro de Aira – até mesmo um livro de mesa sobre latifúndios – se beneficie da leitura de outros.

Quando lhe perguntei sobre Argentina: Las Grandes Estancias, naquela entrevista do ano passado, ele me disse que aceitara o convite dos organizadores porque tinha a impressão de que se tratava de um projeto de preservação histórica. Pouco tempo depois, porém, boa parte das propriedades foram vendidas. Contou isso rindo, como se admirasse o pequeno truque imobiliário, o jogo do qual tinha participado.

revistapiaui.com.br