03 dezembro, 2014

O ateísmo sai do armário


O ateísmo sai do armário

RAUL JUSTE LORES


RESUMO Pesquisas apontam crescimento acelerado dos que se declaram sem religião nos EUA, parcela que hoje corresponde a 20% da população adulta. Para estudiosos, tanto o aumento da descrença quanto eventuais reações conservadoras religiosas estão diretamente vinculadas ao ambiente político do país.

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Pela Constituição do Tennessee, um cidadão não pode concorrer a cargo público se não acreditar em Deus; mas em Nashville, a capital do Estado, um grupo de 150 pessoas se reúne semanalmente na Assembleia dos Domingos, um fórum de ateus praticantes, que conta com mil inscritos.

Nos encontros, de uma hora de duração, revezam-se os "mestres de cerimônias". "Não queremos que uma figura carismática se repita na condução", explica um dos organizadores, o designer gráfico Landry Butler, 47. Durante o encontro, uma dona de casa lê, de um púlpito, escritos de Margareth Mead e J. R. R. Tolkien; uma assistente social relata sua evolução como mãe solteira e seu trabalho com pacientes de Alzheimer; e um grupo desfila um repertório que vai de "Start Me Up", dos Rolling Stones, a "The Cave", dos Mumford & Sons. "Quantas chances você teria de cantar em público regularmente sem ser um artista?", indaga o vocalista Adam Newton, 39.

Nashville ainda é conhecida como "a fivela do Cinturão da Bíblia", formado pelos Estados mais religiosos do Sul dos EUA -título que disputa com Dallas, no Texas.

Um fazendeiro que viajou 75 km com a mulher para não perder o evento dominical dos não crentes relata uma conversa que ouviu na fila para fazer compras em um entreposto agrícola. O vendedor contava a uma freguesa que um dos candidatos a xerife, escolhido em eleição direta, não frequentava nenhuma igreja. A mulher reagiu dizendo: "Esse não leva o meu voto, deve ser imoral". O fazendeiro calou-se. "Fiquei no armário", diz.

Apesar da compreensível cautela do visitante, o fato é que ateus, agnósticos e os "sem religião" estão saindo do armário em um dos países mais religiosos do mundo. O número de adultos menores de 30 anos que se encaixam nesta última categoria já é mais que o triplo do observado no Brasil.

O crescimento é recente e acelerado: em 2007, 15% dos americanos não tinham religião, contra 20% em 2012, segundo pesquisa do Pew Research Center. No Brasil, entre 2000 e 2010, os sem religião oscilaram de 7% para 8%.

O índice de norte-americanos sem religião sobe de 20% para 32% se considerada somente a faixa de 18 a 30 anos. Entre brasileiros, 8% dizem não ter religião e apenas 10% dos que têm de 15 a 29 anos se enquadram nessa categoria, segundo o IBGE (2010). Ateus no Brasil são 0,8% da população -enquanto o cálculo do Pew, que soma ateus e agnósticos, é de 6% da população americana.

Nesse cenário, ateus famosos começam a tratar do assunto -ainda tabu- em público, caso do ator Brad Pitt ou do criador do Facebook, Mark Zuckerberg. Promovem-se conferências anuais para os não crentes, chamadas "Skepticons" (conferência dos céticos), e "paradas do orgulho ateu" são organizadas pelas redes sociais.

"Hoje é mais fácil ser ateu também por causa internet. De repente, começamos a nos achar na rede, a marcar encontros e a nos expor", diz P. Z. Myers, 57, cientista e professor de biologia da Universidade de Minnesota, autor do best-seller "The Happy Atheist" (o ateu feliz), lançado no ano passado.

Com essa onda, coexiste a maioria da população, que preserva um fervor religioso pouco comum em países ricos: a frequência semanal a igrejas e templos nos EUA ainda é quatro vezes superior à europeia. Os que acreditam no criacionismo são 44%, enquanto 55% dizem rezar diariamente.





São o rebanho de uma nação cuja história foi forjada pela presença inaugural de puritanos e outros grupos religiosos em fuga da Europa, que estreitavam os laços com Deus na busca da nova terra prometida. Um país em que se popularizou uma imagem retratando Jesus, entre George Washington e outros patronos da nação, segurando a Constituição como se fossem os Dez Mandamentos.

Especialistas concordam que o enfraquecimento da religiosidade nos EUA tem relação direta com a política. "George W. Bush [2001-09] prestou grande ajuda à causa ateísta", ironiza Myers.

"O que vemos é uma reação a anos em que forças religiosas se colocaram do lado errado da história, apoiando guerras, atitudes machistas, homofobia e doutrinas cada vez mais associadas à crença. No quesito 'relações públicas', foi um desastre para a religião", diz o professor, que tem mais de 150 mil seguidores no Twitter e um blog, premiado pela revista "Nature", no qual mistura ciência, feminismo e ativismo antirreligioso.

O estudioso britânico Nick Spencer, diretor de pesquisa do centro de estudos Theos, frisa que os EUA são "um raro país ultracientífico, onde grandes descobertas tecnológicas acontecem desde o século 19, que ainda é muito religioso". Autor do recém-lançado "Atheists: the Origin of the Species" (ateus: a origem das espécies), Spencer lembra que, como pastores e religiosos abraçaram a revolução americana e participaram do processo de independência, os "pais fundadores" asseguraram na primeira emenda da Constituição a liberdade de culto, proibindo o Estado de legislar sobre o tema e de se assumir oficialmente como cristão.

Foi, na realidade, no século 20, em oposição ao socialismo e seus regimes de ateísmo forçado, que os governos americanos passaram a abraçar com mais convicção a identidade cristã.

Em 1952, por exemplo, foi criado pelo presidente Harry Truman (e aprovado pelo Congresso) o Dia Nacional de Oração, celebrado até hoje em 1º de maio -data em que diversos países comemoram o Dia do Trabalho, escolhido pela Internacional Socialista para marcar um atentado contra grevistas em Chicago, em 1886. Os americanos, no entanto, celebram seu "Labor Day" em setembro.

O juramento à bandeira, repetido em repartições públicas, escolas, quartéis e no Congresso americano, foi modificado em 1954, em plena Guerra Fria, para acrescentar a expressão "uma nação sob Deus". E a célebre inscrição "In God we trust", nas cédulas de dólar, nasceu em 1956, no governo do general Dwight Eisenhower.

Eram os anos do auge do macarthismo, quando o Senado promoveu investigações sobre atividades consideradas "un-american", e o senador Joseph McCarthy (cujo nome veio a batizar a era), via comunistas por todos os lados -do Departamento de Estado a Hollywood.

Em seu primeiro discurso famoso, de 1950, quando denunciou diplomatas de seu país como "comunistas infiltrados", McCarthy disse que a "grande diferença entre o mundo ocidental cristão e o mundo comunista" não era política, "mas moral". "Hoje estamos em uma batalha final, de tudo ou nada, entre cristãos e ateus", anunciou. Pouco depois, pessoas consideradas comunistas, homossexuais e ateus entraram em "listas negras" -centenas foram presas.



CONTRACULTURA

Não tardaria muito para que a crise de identidade da Guerra Fria, com a contestação do conflito no Vietnã, o florescimento de movimentos de liberação sexual e a onda da contracultura, nos anos 1960, passassem a colocar em xeque esse processo de exacerbação persecutória e religiosa. Nas décadas seguintes, situações como a aprovação do aborto pela Suprema Corte, em 1973, e a maior visibilidade dos gays, associada à epidemia de Aids, terminaram por acirrar conflitos e despertar uma nova reação.

Uma espécie de segundo macarthismo desenhou-se a partir do final da década de 1980, época em que líderes religiosos cada vez mais assertivos passaram a condenar a "ruína moral da América". Evangélicos, que vinham conquistando espaço nos meios de comunicação, mostravam-se mais diretamente preocupados com o ativismo político. Chegou-se a ensaiar um impeachment contra um presidente adúltero (Bill Clinton, 1993-2001) e o primeiro episódio da clássica série de TV "The West Wing", sobre os bastidores da Casa Branca, trazia um grupo de evangélicos cobrando compromissos de um presidente democrata.

A reação religiosa-moralista fez a então superstar Janet Jackson ser praticamente banida da TV por ter exibido, acidentalmente ou não, um mamilo durante o show no intervalo da final do Super Bowl, o campeonato de futebol americano, em 2004. E o marqueteiro do então presidente George W. Bush, Karl Rove, estimulou a realização de plebiscitos contra o casamento gay, como garantia de que muitos eleitores sairiam de casa para votar contra -o que favoreceria a reeleição do mandatário naquele ano, que de fato aconteceu.

"Os evangélicos abandonaram o mutismo e encontraram sua voz, às vezes problemática e grotesca. Como resposta, assistimos a um recrudescimento do ateísmo. Não em nome da ciência, mas porque Deus voltou à arena política americana", diz Spencer.

Alguns ateístas têm adotado a política dos decibéis a mais praticada pelos evangélicos -mas para metralhar religiões. Myers diz que "gosta do confronto" e que "precisamos denunciar as loucuras dos crentes". Nessa trincheira também se aloja Sam Harris, um dos principais ativistas ateus do país, presente na lista dos livros mais vendidos desde setembro, com sua segunda obra, "Waking Up" (acordando). A primeira, "O Fim da Fé", de 2004, virou best-seller e fustiga não apenas religiões cristãs mas especialmente o islã.

Foi no programa de Bill Maher -um show de humor político e entrevistas há 20 anos no ar na TV americana- que Harris se meteu em uma arenga a respeito da islamofobia de parte dos ateus que, como ele, fomentam o confronto.

Maher, que já produziu um documentário hostil às religiões ("Religulous", de 2008), disse que "a esquerda americana, em nome do multiculturalismo, é muito tímida em denunciar os absurdos do mundo islâmico". Acrescentou que o islã se tornou "como a Máfia, que mata quem ousa falar mal dela". Harris pegou a deixa e foi mais longe: "O islã é a mãe de todas as más ideias do presente", atacou.

Ben Affleck, o ator e diretor de "Argo", disse que Maher estava generalizando e que "os EUA já mataram mais muçulmanos do que qualquer grupo fundamentalista muçulmano, mas nós não somos acusados disso". O vídeo do embate viralizou em 24 horas.

Maher também fez piada com os pacatos ateus da Assembleia dos Domingos. "A graça de ser ateu" -disse ele- "é não ter que ir a uma igreja. Frequentar essa assembleia é um contrassenso. É como convidar um membro do Tea Party para uma feira de ciências".


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