19 junho, 2013

Os Afro-Sambas de Baden e Vinícius, com a Resenha Luxuosa de Vinícius de Moraes via Luciano Hortencio

Os Afro-Sambas de Baden e Vinícius, com a Resenha Luxuosa de Vinícius de Moraes

Há algum tempo venho pensando em editar o magnífico LP "Os Afro-Sambas de Baden e Vinícius" e apresentá-lo, por sua magnitude, em um corpo só. Por força de experiência sei que, quando se posta no youtube um álbum inteiro, as últimas composições ficam prejudicadas. Assim sendo, optei por apresentar todos os oito Afro-Sambas na mesma sequencia do LP, elaborando também uma Lista de reprodução para o álbum.
Não poderia, de forma alguma, deixar de apresentar uma resenha à altura. Pesquisei vários sites, encontrei muito boas resenhas, porém queria eu uma mais completa, definitiva, absoluta. Por um lance de sorte, ao dar um zoom na contracapa do LP, dei de cara com a resenha do próprio Vinícius e, teimoso e persistente que sou, transcrevi-a, pedindo, de antemão, desculpas por algum equívoco ou omissão ao copiá-la.
                                                 Centenário Vinícius - 1913-2013
                   Os Afro Sambas de Baden Powell e Vinícius de Moraes - Forma - janeiro de 1966
Quando, há quatro anos atrás, Baden Powell e eu começamos a compor pra valer, ficamos praticamente sem sair durante três meses. “Samba em Prelúdio”, “Só por Amor”, “Bom dia, amigo”, “Labareda” e o “Astronauta” são dessa safra. Uma das coisas que mais o fascinava era ouvir um disco que meu amigo Carlos Coqueijo me trouxera da Bahia, uma gravação ao vivo de sambas-de roda e cantos de candomblé, com várias exibições de berimbau em suas diversas modalidades rítmicas.
Nesse meio tempo Baden deu um pulo a Salvador, onde teve oportunidade de ver e ouvir candomblé e conviver com gente “por dentro” do assunto. A Bahia fez-lhe uma impressão enorme. Foi quando saiu nosso samba Berimbau, que só por ser demais conhecido não consta desta série, embora a ela pertença e o Samba da Benção, de balanço nitidamente baiano.
                                 “esse duende da floresta afro-brasileira de sons”       

Mas mesmo antes de “Berimbau”, já Baden me catalizara para compor o “Canto do Caboclo Pedra Preta” aqui representado. O samba foi feito na hora, como se diz – a música e a letra da 2ª parte buscando dar sentido ao canto original do caboclo. Olô pandeiro Olô viola, assim mesmo com a vogal no grave, pois quando o caboclo Pedra Preta nos dizia que pandeiro não quer que eu sambe aqui, viola não quer que eu vá embora, parecia-nos querer ele dar as coordenadas desse eterno conflito do amor e do sexo, cujo bandarilheiro é o ciúme, em que o elemento “macho” (o pandeiro) repudia vivamente a entrada em cena do caboclo Pedra Preta no outro, mas já aqui com a conotação também da divindade de Pai-de-Santo capaz de arrastar o elemento “fêmea” (a viola) para o mundo subterrâneo da magia negra e do sexo místico. Mas Pedra Preta os concita a não fugirem ao próprio destino, pandeiro tem que pandeirar – viola tem que violar. E quando na hora mágica do “caboclo” o galo canta fora de hora, o pandeiro parte, perdida que está para ele a partida.

A viola se integrará na missa negra e, doravante, também ela será sacerdotisa do culto. Esta é uma das interpretações que, uma vez terminado, o samba nos provocou. Mas à medida que ele se impunha pelo mistério do seu contexto, outras foram aparecendo. Pedra Preta seria, ao mesmo tempo, o elemento perturbador do eterno casal em conflito, cujo conflito é a essência mesma da vida em sua dinâmica. Só sei que me deixei completamente envolver pela sábia magia do candomblé baiano e durante meses vivemos em contato com o seu grave e obscuro mundo. Data de então também o “Canto de Iemanjá” em que me parece, Baden atingiu uma beleza poucas vezes alcançada. O canto inicial com que a Rainha do Mar anuncia sua presença e através do qual cativa e atrai os homens para a boda sem sexo(pois Iemanjá, neta de Oxum, sendo sereia tem corpo de peixe dos quadris para baixo) possui um tal mistério que até hoje não posso ouvi-lo sem me perturbar fundamente. Dulce Nunes interpretou-o à perfeição, com uma voz abstrata, como que vinda de fora, do além, do mágico mundo marítimo de Iemanjá.
                                                               Dulce Nunes
Essas antenas que Baden tem ligadas para a Bahia e, em última instância, para a África, permitiram-lhe realizar um novo sincretismo , carioquizar, dentro do espírito samba moderno, o candomblé afro-brasileiro, dando-lhe ao mesmo tempo uma dimensão mais universal. Tirante algumas experiências camarísticas, como fez por exemplo meu querido e saudoso amigo Jayme Ovalle com os “Três Pontos de Santo”, nunca os temas negros de candomblé tinham sido tratados com tanta beleza, profundidade e riqueza rítmica como por exemplo “esse duende da floresta afro-brasileira de sons”, como eu disse de Baden numa frase feliz. É esta, sem dúvida, a nova música brasileira e a última resposta que dá o Brasil – esmagadora – à mediocridade musical em que se atola o mundo. E não o digo na vaidade de ser letrista dos mesmos, digo-o em consideração à sua extraordinária qualidade artística, à misteriosa trama que os envolve, um tal encantamento em alguns, que não há como sucumbir à sua sedução, partir em direção ao seu patético apelo.
Notem também a estrutura rítmica puramente candomblé do “Canto de Xangô”, em que Xangô agodô, o orixá velho, ao mesmo tempo que canta parece advertir Xangô jovem sobre a necessidade de amar sem medo, pois o jovem, após o primeiro fracasso amoroso, começa a adquirir uma certa reserva com relação ao amor. Em “Bocochê”, Segredo, volta o tema de Iemanjá já aqui tratado ritmicamente à maneira do candomblé.
No “Canto de Ossanha” Baden, a meu ver, atingiu o máximo de profundidade em sua carreira de compositor. É um samba “advertente” e muito revolucionário em seu contexto. Um samba positivo que não se recusa a enfrentar os problemas do amor e da vida. Em “Tempo do Amor”, que é de todos o que menos se relaciona com o ritmo e a temática do candomblé, a estrutura do samba é, sem embargo, o que justifica sua inclusão neste LP.
Quando Roberto Quartin nos procurou interessado em gravar esta série, combinamos com o jovem e talentoso produtor que o disco seria feito com um máximo de liberdade criadora e um mínimo de interesse comercial.Não nos interessava fazer um disco “bem feito” do ponto de vista artesanal, mas sim espontâneo, buscando a transmissão simples do que queriam nossos sambas dizer. Gravaríamos, inclusive, faixas mais longas do que gostam os homens de rádio e consequentemente a maior parte dos nossos intérpretes. E Embora não sejamos cantores, no sentido profissional da palavra, preferimos gravá-los nós mesmos a entregá-los a cantores e cantoras que realmente distorcem a melodia e o ritmo das canções em benefício de seu modo comercial de cantar ou de suas deformações profissionais adquiridas no sucesso efêmero junto a um público menos exigente. Assim estamos certos de que, pelo menos, gravamos uma matriz simples e correta, sem modismos nem sofisticações.
E não foi outra a razão pela qual escolhemos uma equipe onde apesar de haver um conjunto vocal profissional da qualidade do “Quarteto em Cy” e uma cantora que se vai firmando cada vez mais como Dulce Nunes – (Ouçam o “Lamento de Exu”), a obediência a esse princípio foi absoluta. Nem as baianinhas nem Dulce são “botadoras de banca” e cooperaram com toda a dedicação na feitura deste LP dentro do espírito que desejamos.
                            Quarteto em Cy - As baianinhas não são "botadoras de banca"
Baden, Roberto Quartin e eu, para “desprofissionalizar” ao máximo a gravação, criamos mesmo o que passou a ser chamado o “Coro da amizade” amigas e amigos nossos escolhidos a dedo que vinham à gravação e sob a orientação do Maestro Guerra Peixe – criador de todos estes notáveis arranjos que aqui estão - mandavam a sua brasa no coro. Para se ter uma ideia do critério adotado, havia uma jovem tabelioa, um broto bonito e inteligente que é, além do mais, filha do meu amigo Fernando Sabino, Eliana Sabino; a dançarina e estrela de teatro e cinema Betty Faria, cuja voz em solo sensual se ouve dando-me as respostas na primeira faixa, o “Canto de Ossanha”; minha amiga Tereza Drummond estará engolindo o violão; minha mulher Nelita, que embora tenha um fio de voz, compareceu com sua graça e entusiasmo; o Dr. Cesar Augusto Parga Rodrigues, psiquiatra, que toca um bom pianinho em casa, quando arranja uma batina toca órgão nas igrejas, figura de grande simpatia mas a quem depois de um convívio maior no calor humano, alcoólico e atmosférico dos idas da gravação (ela realizou-se na canícula de janeiro) eu não sei se entregaria a minha “cuca” para analisar, mormente depois de vê-lo regendo o coro metido no avental médico com que chegara do plantão e, finalmente Otto Gonçalves Filho, o popular Gaúcho, figura “velosiana” como o chamei, que também faz suas coisinhas no violão e tem na algibeira uns sambas que irão correr mundo.
                              Betty Faria - Solo sensual em respostas, no Canto de Ossanha
Por falar em figura velosiana cumpre-me explicar uma coisa: O samba Tempo de Amor” está sendo popularmente chamado de “Samba do Veloso”. A razão é simples, é que Baden o compôs no já famoso Bar Montenegro, também chamado o Veloso, ali na esquina da Prudente de Moraes e Montenegro, em Ipanema.
O mesmo, aliás, onde há uns cinco anos atrás, Antonio Carlos Jobim e eu vimos passar toda linda e cheia de graça a Garota de Ipanema.

Rio, fevereiro de 1966
Vinícius de Moraes
CANTO DE OSSANHA
CANTO DE XANGÔ
BOCOCHÊ
CANTO DE IEMANJÁ

TEMPO DE AMOR

CANTO DO CABOCLO PENA BRANCA

TRISTEZA E SOLIDÃO

LAMENTO DE EXU

Ficha Técnica:

Ficha Técnica:
Produção e direção artística - Roberto Quartin e Wadi Guebara
Técnico de Gravação - Ademar Rocha
Contracapa - Vinícius de Moraes
Capa - Goebel Weyne
Arranjos e Regência - Maestro Guerra Peixe
Vocais: Vinícius de Moraes, Quarteto em Cy e Coro Misto
Sax Tenor - Pedro Luiz de Assis
Sax Barítono = Aurino Ferreira
Flauta - Nicolino Cópia
Violão - Baden Powell
Contrabaixo - Jorge Marinho
Bateria - Reisinho
Atabaque - Alfredo Bessa
Atabaque Pequeno - Nelson Luiz
Bongô - alexandre Silva Martins
Pandeiro - Gilson de Freitas
Agogô - Mineirinho
Afoxé - Adyr José Raimundo

Fontes:
Fotos - Google
Contracapa do LP - Resenha de Vinícius de Moraes, transcrita por lucianohortencio