23 maio, 2013

Vanzolini, um gênio imortal


por André Carvalho  ilustração Kelvin Koubik "Kino"*

Ele foi e foi sem pena, com o cravo branco na mão. Quanta vitória no passado, quanta página na história. Agora só toca harpa, de camisola e sandália. Aos sambistas, deixou a saudade, que corta como aço de “naváia”, deixando corações aflitos e os “óio cheio d’água”. No tempo em que tinha asa, piruetou, mandou brasa, mas agora a cachoeira desceu e não sobe mais a serra. Deus sabe o dia e a hora, vida como a dele não é feita para entender. É uma fumaça, e o tempo do homem, uma baforada. Deu na primeira edição: morte é paz.
Paulo Emílio Vanzolini foi um paulistano que trazia no sangue, como poucos, o micróbio do samba. Sambista dos bons, foi autor de grandes páginas do nosso cancioneiro, que fizeram com que o samba de São Paulo derrubasse fronteiras geográficas, alcançando ouvidos, mentes e corações pelo Brasil afora.

Àqueles que a genialidade habita, transcende a normalidade, o simples, o comum. Bom de caneta, de verso e prosa, ritmados em compasso de samba, o compositor era também doutor. Dr. Paulo Vanzolini, zoólogo altamente gabaritado, foi um dos maiores especialistas em répteis do mundo e diretor do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo por mais de 30 anos.

A paixão pelo samba veio na tenra infância, quando tinha seus inocentes seis anos de idade e passava horas a fio escutando os grandes cartazes da música popular brasileira no rádio, aproveitando os momentos em que não estava na escola. Ainda menino, dava suas escapadas para ver a orquestra tocar em bailes na sede do Glorioso Futebol Clube. Depois, muitas vezes, no ginásio, a despeito de sua paixão pelos estudos, matava aula para assistir memoráveis rodas de samba.

O gosto pela música ganhou força na juventude, quando passou a frequentar os “inferninhos” do centro da capital Paulista, desafiando versadores com rimas afiadas e iniciando-se na arte da composição. Vanzolini criou muito samba, fruto de histórias cotidianas que, atento, observava com intenção de transformar em música. Muitas composições se perderam pelas madrugadas paulistanas, junto ao sereno que caía do céu e se dissipava com os primeiros raios de sol da manhã. Outros, no entanto, permaneciam vivos, latentes em sua mente.

“Ronda” 

Certa vez, quando fazia ronda pelo centro da cidade, em seus tempos de cabo do Exército brasileiro, teve a inspiração para criar aquele que seria um dos grandes clássicos da música popular brasileira, “Ronda”. A primeira gravação deste samba, que fez com que Paulo Vanzolini ingressasse no meio musical profissional – ainda que ele se mantivesse, por toda a vida, focado em sua profissão de zoólogo –, foi um tanto curiosa.

Inezita Barroso, cantora paulista que gravou muita música caipira, sendo também grande conhecedora de temas folclóricos e sambas, era muito amiga da primeira mulher de Vanzolini, Ilze. Quando Inezita foi ao Rio de Janeiro, nos idos de 1953, gravar “Marvada Pinga”, um de seus maiores sucessos, levou à tiracolo o casal de amigos paulistas.

Noite Ilustrada
Chegando aos estúdios da RCA, surgiu um problema: ela não tinha em mente nenhuma música para registrar no lado B do disco. Precisava de alguma solução rápida. Perguntou a Vanzolini se ele não tinha nada “na meia” para ela gravar. Ele ofereceu, então, “Ronda”. Rapidamente, junto ao conjunto regional da gravadora, a cantora aprendeu o samba. E realizou o primeiro registro deste clássico, que, no entanto, não alcançou, nesta ocasião, grande repercussão.

Vanzolini ingressava, de forma inusitada, no meio artístico. Cronista musical, o compositor tinha sempre à mão um cantor, a quem chamava de “tradutor”, que o ajudava a trabalhar o samba que imaginava na cabeça. Adauto Santos e Luiz Carlos Paraná muito o ajudaram nisso, mas ele destacava um sambista chamado Zelão como um de seus maiores “tradutores”.

Era ele quem Vanzolini gostaria que gravasse “Volta por cima”. O destino fez, no entanto, com que o samba fosse imortalizado por Noite Ilustrada. Foi no ano de 1963 que veio o enorme sucesso. “Reconhece a queda e não desanima / Levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima” caiu na boca do povo. Vanzolini costumava dizer que a mensagem mais importante do samba não era o “volta por cima”, e sim o “reconhece a queda”.

“Eu me lembro quando Noite Ilustrada gravou ‘Volta por cima’, em 1962. Eu tinha 12 anos e já gostava de samba. Foi um sucesso enorme esta gravação”, afirma Eduardo Gudin – cantor e compositor paulistano, parceiro e arranjador de Vanzolini –, ressaltando que “o fato dele ser autor de dois clássicos absolutos da música brasileira, ‘Ronda’ e ‘Volta por cima’, engrandece muito seu nome e faz dele um ícone do samba paulista”. O compositor vai além e pontua que “poucos sambistas de São Paulo têm a visibilidade nacional” de Vanzolini. “Ele é muito respeitado, transcende as fronteiras regionais e se destaca nacionalmente”.

Se a gravação de “Ronda”, de Inezita Barroso, fez pouco sucesso – assim como os registros posteriores de Cláudia Moreno, Carmen Costa e Marlene –, foi com um disco produzido por Eduardo Gudin que a música entrou, definitivamente, para o cancioneiro nacional. “Em 1977, produzi um disco da Márcia, que levava o nome deste samba. Somente aí que “Ronda” estourou de vez”, lembra.

“Onze sambas e uma capoeira”

Gudin conheceu Paulo Vanzolini sete anos depois de se impressionar com a força do samba “Volta por cima”. Corria o ano de 1969. Com “Gostei de ver”, feito em parceria com Marco Antônio da Silva Ramos, Gudin alcançou as finais do V Festival da Música Popular Brasileira, da TV Record. Vanzolini gostou, e quando encontrou o futuro parceiro no Bar Jogral – ponto de encontro da boemia paulistana –, fez questão de cumprimentá-lo, iniciando aí uma amizade que levaria para o resto da vida.

De propriedade do cantor e compositor Luiz Carlos Paraná e do publicitário Marcus Pereira, o Jogral, fundado em 1966, reunia músicos, artistas e boêmios paulistanos, que ali se encontravam para cantar e discutir os rumos da cultura popular brasileira. Um ano depois da fundação do bar, Marcus Pereira teve a ideia de produzir um disco com as músicas de Paulo Vanzolini, para ser distribuído entre os clientes de sua agência de publicidade. O disco “Onze sambas e uma capoeira” seria o embrião do selo Marcus Pereira Discos, que reuniria em seu catálogo pérolas da discografia brasileira, como, por exemplo, os dois primeiros discos solos de Cartola.

“Onze sambas e uma capoeira” contou com as participações de Luiz Carlos Paraná, Adauto Santos, Cláudia Moreno, Mauricy Moura e os irmãos Chico e Cristina Buarque. Com 16 anos de idade, Cristina fazia ali sua primeira gravação profissional, cantando o samba “Chorava no meio da rua”. A cantora lembra-se de sua estreia nos estúdios: “Minha mãe não queria deixar, se preocupava com meus estudos, achava que eu não deveria seguir carreira de artista”.

O fato de o disco ter sido lançado, à princípio, em tiragem limitada, como brinde para clientes da agência de publicidade de Marcus Pereira (depois seria relançado comercialmente), fez com que o publicitário e produtor musical conseguisse dobrar sua mãe, Maria Amélia. “Paulo Vanzolini foi o responsável pelo pontapé inicial na minha carreira”, diz a sambista ao Nota de Rodapé.

Vanzolini, por Cristina e Gudin

“Paulo era muito amigo de meu pai e frequentava muito a minha casa, quando morávamos em São Paulo. Minha mãe também era muito amiga da primeira mulher dele. Era aquela amizade de família, gostosa”, relembra Cristina, ressaltando que, com a morte de Sérgio [Buarque de Hollanda], a amizade permaneceu. 
“Ele gostava de ver as cantorias das meninas, ficava encantado, adorava participar daquilo”.

Cristina homenagearia Vanzolini em 1974, quando gravou em seu disco de estreia o samba “Cara limpa”, brilhante criação do compositor paulista (“Já me acostumei com dia a dia em vez de vida inteira / Relógio em vez de retrato na cabeceira”). Em 2002, gravaria outras quatro composições do paulista, no “Acerto de contas”, caixa com 4 CDs, contendo a grande maioria das músicas criadas por Vanzolini: “Falta de mim”, “Morte é paz”, “Noite longa” e “Mente”, esta última feita em parceria com Eduardo Gudin.

“Foi nossa primeira parceria”, conta Gudin. “Ele me mandava a letra e eu fazia a música por cima, fizemos quatro sambas nesse esquema”, diz. Além de “Mente”, o sambista fez melodia para as bem colocadas palavras criadas por Vanzolini em “Longe de casa”, “Condição de vida” e “Pra tirar você do sangue”. Há, no entanto, a possibilidade desta lista aumentar. “Tenho duas letras inéditas dele comigo”, revela o compositor.

A forte amizade entre Gudin e Vanzolini fez com que o primeiro produzisse e criasse os arranjos do disco “Inéditos de Paulo Vanzolini”, lançado em 1987, e que não chegou a ser comercializado – foi distribuído, tal como a primeira edição de “Onze sambas e uma capoeira”, como brinde para clientes de uma empresa.

Além de “Onze sambas e uma capoeira” (1967), “Acerto de contas” (2002) e deste raro “Inéditos de Paulo Vanzolini” (1987), a discografia do compositor contempla o álbum “A música de Paulo Vanzolini” – lançado em 1974, com Paulo Marques dividindo o microfone com Carmen Costa – e o disco “Por ele mesmo”, de 1979, onde o sambista, finalmente, interpreta suas canções. “Ele era engraçado cantando, todo desafinado, sem ritmo”, lembra, com graça, Cristina.

Na opinião de Cristina e Gudin, o que salta aos olhos na obra de Paulo Vanzolini é o extremo esmero que tinha com as palavras. Cronista social de primeira grandeza, burilava as letras de seus sambas até conseguir o resultado perfeito, que desse ritmo às rimas e às ideias expostas sob a melodia de sambas, choros, valsas, toadas e capoeiras.

“As letras dele são geniais. Ele tinha cada sacada... Era muito louco. Sempre bem humorado”, aponta Cristina. “Era um cronista, tinha um linguajar muito peculiar. Gostava de contar história dos outros, coisas que observava em suas andanças pela cidade e em suas viagens que fazia trabalhando como zoólogo”.

Gudin endossa o argumento da caçula dos irmãos Buarque de Hollanda. “Ele tinha uma preocupação com a letra. Tinha um cuidado, um capricho com as palavras, buscava o tamanho certo, a medida exata. Era um cronista, como Noel e Chico”. Para o sambista, Vanzolini “armou um esquema musical só dele. Ele era diferente mesmo, tinha um talento incrível. Era superdotado, um gênio”.

As criações de Paulo Vanzolini

Das crônicas urbanas do mestre, a vida boêmia se faz presente em composições como o samba “Falso boêmio” (“Porque não é boemia trocar noite pelo dia / Beber com ar de tristeza / Ser boêmio é diferente / É viver clinicamente, padecendo com grandeza”) ou a “Valsa das três da manhã” (“Eu não bebo pra esquecer / Bebo pra lembrar / Bebo e cambaleio e tenho você ao meu lado / É o meu instante de felicidade”).

A praça Clóvis, em São Paulo, na década de 1960
O retrato de São Paulo é pintado com cores de tragicomédia, simbolizando uma metrópole onde problemas como a falta de segurança e a ausência de infraestrutura são amenizados pelo fim de um romance mal desenrolado ou por uma bela paisagem do alto de um morro. Os exemplos citados são os sambas “Praça Clóvis” (“Na Praça Clóvis, minha carteira foi batida / Tinha vinte e cinco cruzeiros e o seu retrato / Vinte e cinco, eu francamente achei barato / Pra me livrarem do meu atraso de vida”) e “Seu Barbosa” (“Ô Seu Barbosa, nóis era dois casado certo / Morando num bairro longe, mas passando ônibus perto / Uma vista tão linda, de cima do nosso morro / E as crianças precisando de um pronto-socorro”).

A sua maneira particular de exaltar a mulher, era feita com uma boa pitada de ironia. Em “Mulher que não dá samba” ele diz que “Ainda se fosse brava, porém competente / Se atrás da bronca viesse a roupa limpa, o café quente / Ou se fosse ignorante no claro e ardente no escuro / Eu lhe asseguro: não faria falta a paz / Mulher que não dá samba, eu não quero mais”. Já na composição “Inveja”, ele clama que ela tome juízo e afirma: “Mulher que se vira pro outro lado tá convocando a suplente / Mulher que não ri não precisa dente”.

De uma temática recorrente na música popular brasileira, o pranto, criou outras duas pérolas: a clássica “Volta por cima” (“Chorei, não procurei esconder / Todos viram / Fingiram / Pena de mim, não precisava / Ali onde eu chorei, qualquer um chorava /Dar a volta por cima que eu dei / Quero ver quem dava”) e a pungente “Chorava no meio da rua” (“Você diz que eu choro escondido / Ai, meu deus, que ingenuidade sua / Se eu tivesse que chorar / Chorava no meio da rua”).

Finalmente, sobressai em suas letras o ritmo, o andamento da poesia, cadenciada com palavras em posições cirúrgicas. Em “Mente”, consegue esse efeito de ritmo com rimas: “Me chama de meu amor, constantemente / No meio de toda a gente / E a sós, entre nós dois, mente”. Já em “O rato roeu a roupa do Rei de Roma”, o compositor vale-se de um famoso trava-língua e vai além: “O rato roeu a roupa do rei de Roma / O sapo saltou do saco, se sacudiu e sumiu da soma / Tatu, tamanduá, tejubina transaram umas trovas, tolices totais / O vento da vida ventou e varreu você pro nunca mais”.

Mais que uma obra, um legado

Paulo Vanzolini teve mais de 50 sambas gravados, por nomes da mais alta patente da música popular brasileira. Entre seus intérpretes estão: Nelson Gonçalves, Carlinhos Vergueiro, Nara Leão, Martinho da Vila, Paulinho da Viola, Chico Buarque, Clara Nunes, Elza Soares, Maria Bethânia, Roberto Silva, Ana Bernardo, Márcia, Inezita Barroso, Jair Rodrigues, entre outros. 

Para ele, compor era um processo de extrema dedicação. Muitas vezes, demorava meses até achar a rima perfeita para seus versos. Sua última composição, feita em 1997, simboliza sua marca, sua passagem, seu legado. “Quando eu for, eu vou sem pena / Pena vai ter quem ficar”. Paulo Vanzolini foi sem pena. Mas, para quem fica, no entanto, permanece vivo seu cancioneiro, repleto de beleza e genialidade.

Em suas andanças pela floresta, o zoólogo costumava dizer que “na mata, todas as partes são mais que o todo”, já que cada animal, cada folha caída ao chão, cada sopro de vento e raio de sol que penetra pelas árvores têm um valor imensurável, não podendo ser descrito apenas como uma parte do ecossistema. Em sua obra, ocorre o mesmo. Em cada composição, um pedacinho de boemia, de madrugada, de drama, de denúncia, de crítica social, de humor, de poesia, do viver paulistano, do povo brasileiro. No total, seus sambas, valsas, toadas e capoeiras formam muito mais do que uma obra, simbolizam um estilo, uma maneira peculiar de criar versos e melodias originais. Mais que uma obra, é um legado para a música popular brasileira.


*André Carvalho, jornalista, mantém a coluna mensal Batucando, sobre samba. Ilustração de Kelvin Koubik, "Kino", colunista do NR, artista visual, grafiteiro e músico de Porto Alegre


De: Nota de Rodapé <contato@notaderodape.com.br>
Assunto: Boletim NR
Para: sulinha3@yahoo.com.br