21 março, 2013

O ser do instante - Cecília Meireles


Análise do poema "Transição", de Cecília Meireles
por Cristiane Valéria Graton 
(especialista em Literatura e Crítica Literária pela PUC/SP)
"O tempo não descansa, nem rola ociosamente pelos sentidos, pois produz na alma efeitos admiráveis. O tempo vinha e passava, dia após dia. Vindo e passando, inspirava-me novas esperanças e novas recordações. Pouco a pouco, reconfortava-me nos antigos prazeres a que ia cedendo a minha dor. Não se sucediam, é certo, novas dores, mas fontes de novas dores. Mas por que me penetrava tão facilmente e até o íntimo aquela dor, senão porque derramei na areia a minha alma, amando um mortal como se ele não houvesse de morrer?" (Sto. Agostinho, 2009, p.83)

No conjunto dos seres e coisas que fazem parte do Universo há sempre algo para ser contemplado. Assim são os poetas: contemplam a vida e renovam-na, inaugurando o instante. Cecília Meireles reescreveu este Universo, sensorialmente, em suas obras, nas quais as palavras vibram, fermentam, silenciam no cantar. Para a poetisa, a vida é um fluxo constante onde a transitoriedade emerge da consciência do Ser, que compreende a brevidade da vida.

Dessa forma, o objetivo de nossa reflexão tem como eixo a temporalidade do instante, traço que caracteriza o homem. Porém, teremos como foco principal o "eu", que possui plena consciência de sua trajetória individual na vida. Traçaremos uma analogia entre o poema Transição, de Cecília Meireles, e o pensamento dos filósofos Santo Agostinho e Martin Heidegger, os quais pensaram o homem como indivíduo particular destinado ao tempo. Ambos vivificaram os rastros da alma alertada pelos desenganos do mundo, oriundos da fragilidade das coisas, da insegurança do ser humano e das inconstâncias do indivíduo. Santo Agostinho, por exemplo, sofreu as maiores angústias e logrou as mais requintadas alegrias da vida quando encontrou o norte da sua travessia.

Esta é a chave-mestra para nossas indagações: o "eu" desdobrando-se em muitos "eus", ao mesmo tempo que trava uma luta interior consigo ao mergulhar nas profundezas mais abissais, de onde emergirá um novo "eu": o ser do instante.

TRANSIÇÃO
(Cecília Meireles) 

O amanhecer e o anoitecer 
parece deixarem-me intacta. 
Mas os meus olhos estão vendo 
o que há de mim, de mesma e exata. 

Uma tristeza e uma alegria 
o meu pensamento entrelaça: 
na que estou sendo cada instante, 
outra imagem se despedaça. 

Este mistério me pertence: 
que ninguém de fora repara 
nos turvos rostos sucedidos 
no tanque da memória clara. 

Ninguém distingue a leve sombra 
que o autêntico desenho mata. 
E para os outros vou ficando a mesma, 
continuada e exata. 

(Chorai, olhos de mil figuras, 
pelas mil figuras passadas, 
e pelas mil que vão chegando, 
noite e dia... - não consentidas, 
mas recebidas e esperadas!) 

O tempo contempla a poetisa, assim como a poetisa o contempla, transformando-o em poema que, ao longo de seu corpo estrutural, sofre breves transformações, configurando a temática do canto: a temporalidade do instante.

O título Transição é o mote responsável por nossas reflexões, ao passo que nos remete à ideia de passagem do tempo. Esta fatídica realidade é fruto da "temporalização do porvir, que está sujeito a mutações" (Heidegger, 2009, p. 422).

O termo porvir, ordinariamente, mensurado e chamado de presente, passado e futuro, é, originariamente, o instante atual do sujeito, ou seja, a "atualidade mantida na temporalidade própria" (Heidegger, 2009, p. 423).

Consequentemente, somos seres passivos de mudanças, ou melhor,perecíveis ao instante, que nos consome sorrateiramente, ocasionando a transição de nós / em nós mesmos.

Portanto, a passagem do tempo não se dá como um instante que substitui outro instante, pois, nesse caso, haveria sempre apenas o presente, não haveria o prolongamento do passado no tempo atual, não haveria evolução, não haveria duração concreta.

Sendo assim, tudo em torno do homem está em constante transformação, e isso se deve ao tempo que não deixa de fluir incessantemente.

Dessa forma, em Transição, a voz poética se refere à própria vida em termos de travessia, ou da passagem do indivíduo junto às experiências ao longo de sua existência.

Isto posto, percorremos a primeira estrofe do poema de Cecília Meireles, que retrata magnificamente a temporalização do instante, tal como Santo Agostinho admirou o instante em seu livroConfissões (2009, p. 268; grifos meus):

"Vosso é o dia e 
Vossa é a noite. 
A um aceno da 
Vossa vontade, 
Os instantes voam".

Cecília possui semelhante posicionamento pelo "O amanhecer e o anoitecer" que decorre. Porém, nem sempre essa operação é percebida integralmente: por mais abstrata que seja a passagem do tempo, mesmo um indivíduo indiferente a essa situação sentiria vagamente a constante mudança: "parece deixarem-me intacta".

Por conseguinte, os olhos do "eu" estão atentos às leves mudanças provocadas pelo tempo e, também, por outro lado, percebem aquilo que não se altera: a existência de si, quando o eu "diferencia-se da diferença" (Heidegger, 2009, p. 532): "o que há de mim, de mesma e exata", ou seja, sua voz - metáfora de sua alma - que busca a eternidade, transcendendo pela palavra a realização de tal empresa.

Nesse contexto, pode-se inferir que o passado é o tempo decorrido sem trégua. Logo, o presente seria, então, a consciência que o indivíduo tem de seu corpo no espaço em face do imediato, que separa o passado do porvir. Portanto, a "cada instante", o passado cresce sem intervenções, transformando-nos em "outra imagem", em que o "pensamento entrelaça", de certa forma, "uma tristeza e uma alegria" - sentimentos opostos, contudo, oriundos das transformações que o Ser sofreu.

Esta iminente metamorfose é de uma originalidade poética reforçada pela locução verbal "estou sendo", que corrobora a lucidez da poetisa mediante a fugacidade da vida. Absorto em si, o eu-lírico, em sua individuação, tem consciência do mistério da vida marcado pelos "turvos rostos" sucedidos do instante ínfimo que ninguém percebe.

Entretanto, o passado conserva-se no "tanque" vivo da memória, onde o "eu" encontra tudo que sente, pensa, tudo o que quer e que desde "sua primeira infância está lá, debruçado sobre o presente que a ele irá se juntar, forçando a porta da consciência que gostaria de deixar de fora" (Bergson, 2006, p. 47). Nesse sentido, nota-se que, se o passado cresce a todo instante e a memória conserva-o sem intervenções, então ele nos segue a todo o momento. Esta mesma ideia é sugerida pela poetisa no seguinte verso: "tanque da memória clara". O significado da palavra "tanque" denota recipiente ou reservatório para líquido de qualquer natureza. Porém, não quer exprimir coisas, mas refletir-se, Transformar-se Em, ou melhor, Ser.

Consequentemente, obtida a aparição da palavra "tanque" como armazenamento, foi lhe acrescentado o efeito de guardar, conter. Logo, o vocábulo "tanque" armazena não qualquer líquido, mas água, que associada ao vocábulo "clara", desdobra-se em espelho que, como tal, reflete nossa imagem da mesma forma que a memória reflete as lembranças passadas, guardadas no "grande receptáculo que é a memória" (Sto. Agostinho, 2009, p. 225). Esse fenômeno cíclico nem todos percebem, já que o homem se entregou à superficialidade do objeto.

Para expressar essa transitoriedade imagética do eu que se desdobra pelo instante, a poetisa lança mão de alguns recursos estilísticos. Entre eles a ocorrência das rimas graves (ou femininas) vocálicas presentes, sempre nos segundo e quarto versos de cada estrofe: intacta, exata, entrelaça, despedaça, repara, clara, mata, exata, passadas e esperadas.

Estes vocábulos são recursos poéticos que denotam lucidez da autora quanto à brevidade da vida e decorrem do fato de o eu compreender sua existência, que vai além do instante. Por conseguinte, o instante se estilhaça para o eu, ao passo que ele muda em busca de sua transcendência.

A inserção do tempo é angustiante para o homem, sobretudo quando ele se apercebe de seu estado perecível, cujo destino é amorte, o que também demonstra quem ele era/é/será através dos: "olhos de mil figuras, / pelas mil figuras passadas, / e pelas mil que vão chegando", sucessivamente "noite e dia..."

Vê-se que a autora arquiteta no corpo do poema transformações que simulam o efeito do tempo na matéria corpórea. Esta peculiaridade intensifica-se na quarta estrofe, iniciada graficamente por parênteses, que interrompem o contato entre as estrofes anteriores, acrescentando uma reflexão, ou melhor, um estado de alma, finalizando seu consórcio, mas, infindando-se no instante por meio de seu cantar.

A mudança da forma verbal para o imperativo, iniciada na estrofe pelo verbo "Chorai", demonstra dois estados de humor do eu poemático: angústia aceitação, provenientes dos "olhos de mil figuras", que refletem, por meio do "tanque da memória clara", seu destino. Tais alterações são notadas e esperadas, mas "não consentidas". Entretanto, a poetisa, em cada rosto seu, encontra imagens do ritual da vida e, como uma criança, que é perceptível ao mundo, descobre-o e, maravilhada, traduz sua descoberta numa grande celebração: Chorai, olhos de mil figuras, pelas mil figuras passadas, e pelas mil que vão chegando, noite e dia... - não consentidas, mas recebidas e esperadas!

Segundo o filósofo Martin Heidegger (2009, p. 421-422), ao falar sobre o indivíduo que possui a consciência de sua temporalidade e a compreende, há "as múltiplas possibilidades de visão" a partir do momento em que, "apreendido de modo existencialmente originário, compreender significa: ser, projetando-se num poder ser, em virtude do qual a presença sempre existe."

Esta fala corrobora o estado de alma presente no poema, em que o eu lançou-se na "temporalidade do porvir que está sujeita a mutações", conforme já mencionado no início deste ensaio. Porém, são as formas de olhar o instante que nos fazem diferentes. Embora o homem compreenda este fato, a angústia surgirá do porvir da tomada de decisões, da mesma forma, também, surgirá "esperança-para-si" (Heidegger, 2009, p. 432), que alivia a carga existencial do instante, contrapondo-se ao que é esperado: as alterações da matéria. 

A antítese dos vocábulos "não consentidas" e "mas recebidas e esperadas" confirma as reflexões do filósofo, principalmente no uso do epifonema, em forma exclamativa, sintetizando o modo como o eu poemático escolheu a sua forma máxima de olhar o mundo: consagrando-o. Este lirismo só existe em fugazes momentos, inaugurando sempre o instante.

Assim também pensa Santo Agostinho: "Concedestes ao artista os sentidos do corpo, com os quais, servindo-se deles como de intérpretes, transpõe da fantasia para a matéria a figura que deseja realizar." (Sto. Agostinho, 2009, p. 271)

O excerto acima, coincidentemente, tem como título "A palavra criadora", em que o filósofo concebe a Gênese do universo como algo místico, em que o enigma se instaura da palavra: "Faça-se, e assim se fez" (2009, p. 301).

Nota-se, então, que o artista cria este mistério ao captar o sompróprio das coisas pelo crivo de sua percepção, circunscrevendo autênticos desenhos como: turvos rostos, leve sombra, mil figuras, que, de leitura em leitura, experimentam a transição etérea de seu significado.

Sendo assim, a linguagem poética não possui a pretensão de dizer, mas de sugerir afinidades entre a alma e a natureza, que se correspondem, entrelaçam-se, amalgamando-se à palavra como seres simbióticos.

Nos dizeres de Octavio Paz (1976): "poesia é metamorfose, mudança, operação alquímica", dessa maneira, a palavra "transição" faz-se "limítrofe da magia, da religião e de outras tentativas para transformar o homem" (Paz, 1976, p. 50) naquilo que, de fato, ele é: Transição.

O poema de Cecília Meireles revela o "eu" desdobrando-se em outros "eus" - decorrência da relação estabelecida entre ele e o mundo que o cerca. Desse modo, ao compreender a essência de si mesmo em suas particularidades, o indivíduo singulariza-se pela sua forma de olhar o Universo.

O Ser do instante tem consciência de "ter sido" (Heidegger, 2009, p. 424), contudo, interessa-se pelo ser do agora, o qual possui uma "presença decidida" (Heidegger, 2009, p. 431). Dessa forma, instaura o instante, torna-se "livre para as possibilidades próprias" (Heidegger, 2009, p. 431) de Ser.

O "eu" que conhece a si mesmo tem por característica a liberdade de renovar o sentido daquilo que parecia fatalidade, transformando a situação de fato em uma realidade nova, resultante de sua ação. Essa força transformadora, que torna real o que era somente possível, e que se achava apenas latente como possibilidade, é o que faz surgir uma obra de arte, uma obra de pensamento e a quebra de paradigmas, ao passo que nos conhecemos e somos artistas de nós mesmos, uma vez que o instante é um eterno nascer.
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Referências bibliográficas

- AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução J. Oliveira e A. Ambrósio de Pina. 24.ed. Petrópolis: Vozes, 2009.

- BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. Tradução Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

______. Memória e vida. Tradução Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

- CAMPOS, Paulo Mendes (Org). Flor de Poemas. 17ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003.  

- DELEUZE, Gilles. A dobra: Leibniz e o barroco. Tradução Luiz B. L. Orlandi. 5ª ed. Campinas: Papirus, 1991.

- GOUVÊA, Leila V.B. Ensaios sobre Cecília Meireles. São Paulo: Humanitas, 2007.

- HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Tradução Marcia Sá Cavalcante Schuback. 4ª ed. Petrópolis: Vozes, 2009.

- MEIRELES, Cecília. Poemas. Tradução Ricardo Silva Santisteban. 2ª ed. Lima, Peru: Centro de estudos Brasileños, 1983.

______.Poesias completas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. PAZ, Octavio. A outra voz. Tradução Wladir Dupont. São Paulo: Siciliano, 1993.



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