10 fevereiro, 2013

Um gênio do samba - Cartola




Com fotos e manuscritos inéditos, nova biografia de Cartola retrata sua trajetória acidentada e seu notável talento

Eliane Lobato
BAÚ DE VERSOS
Parceria com Elton Medeiros, escrita em papel timbrado
do Ministério da Indústria e Comércio, onde Cartola trabalhou

A imagem de Cartola magro, elegante e de terno branco não é uma composição artística. Ele praticamente nasceu assim. Garoto de classe média, morava perto da praia, no bairro do Catete, na zona sul do Rio de Janeiro – seu avô materno recebia um bom salário e proporcionou um ótimo padrão de vida aos netos, até seu falecimento. A partir daí, começaram os tempos difíceis para o vaidoso menino de 12 anos que havia tomado gosto pelas roupas e sapatos fashion. Ao trabalhar como operário de obra, percebeu que seria bom proteger os cabelos dos pingos de cimento que caíam a toda hora. Já morando no Morro da Mangueira, subúrbio carioca, ignorou o cenário pobre e escolheu um chapéu-coco, usado também fora do trabalho.Ficou conhecido como “aquele da cartola”. Desde então, Agenor de Oliveira passou a ser Cartola –, e é assim que identificamos um dos maiores compositores da música brasileira.
Cartola_livro.jpg
Uma trajetória de pobreza, poesia, muita música, um bocado de malandragem, carnavais e doenças. Tudo isso está bem descrito na biografia “Divino Cartola – Uma Vida em Verde e Rosa” (Casa da Palavra), de Denilson Monteiro. Até executor de despachos de macumba em encruzilhadas o grande Agenor foi. Todos os biscates eram bem-vindos para aumentar a renda doméstica e pagar sexo com prostitutas. Por esse vício, “o corpo dele transformou-se em um verdadeiro zoológico de doenças venéreas”, escreve o biógrafo. Mas a felicidade veio mesmo quando encontrou Euzébia Silva do Nascimento, a dona Zica, com quem foi casado durante 26 anos. Sem filhos naturais (seu filho Ronaldo de Oliveira é adotivo), Cartola deixou uma divina prole musical, como “O Mundo É um Moinho” e “As Rosas não Falam”, e é um dos pais da tradicional escola de samba Mangueira. Morreu de câncer, aos 72 anos. Além de contar a história de Cartola de maneira bonita, o livro de Monteiro ainda reúne fotos do artista, documentos inéditos da vida dele e um CD com alguns clássicos.
Leia trechos da obra:

Lá no Zicartola

p. 84

Inicialmente, o sobrado da Rua da Carioca funcionava servindo somente almoço, encerrando suas atividades às 15 horas. Às sextas-feiras, como acontecia na Rua dos Andradas, havia as noitadas regadas ao bom samba. Mas em pouco tempo a casa passou a abrir também à noite, oferecendo jantar, e contando com música também às quartas-feiras.
O diretor musical do estabelecimento era Zé Kéti, que também se apresentava cantando juntamente com Cartola, Nelson Cavaquinho e Ismael Silva, as estrelas de primeira grandeza do lugar. Sérgio Cabral vivia divulgando a casa nos jornais em que trabalhava, o que fazia com que a capacidade de 120 lugares do local estivesse sempre esgotada, algumas vezes chegava a 130 pessoas. A animação era constante na casa, palco também de momentos intimistas, como a noite em que Cartola interpretou pela primeira vez “Acontece”, uma canção que sonhava ouvir um dia na voz de Elizeth Cardoso:

Esquece o nosso amor, vê se esquece.
Porque tudo no mundo acontece
E acontece que eu já não sei mais amar.
Vai sofrer, vai chorar, e você não merece,
Mas isso acontece.
Acontece que o meu coração fi cou frio
E o nosso ninho de amor está vazio.
Se eu ainda pudesse fi ngir que te amo,
Ah, se eu pudesse
Mas não posso, não devo fazê-lo,
Isso não acontece.

Lúcio Rangel que estava presente nessa noite histórica, após o Divino Cartola terminar de interpretar sua mais recente obra-prima, levantou-se de sua mesa e saiu, descendo as escadas, e deixou o restaurante. Preocupado, Sérgio Cabral foi indagar a um dos garçons sobre o que havia acontecido com o jornalista e ouviu:
— Aquele senhor saiu daqui chorando.
Era perfeitamente compreensível. A música de Cartola com toda a sua sensibilidade era mesmo capaz de levar a reações semelhantes à de Lúcio (e não é exagero dizer que isso acontece até hoje).
 Outro personagem importante para o sucesso do Zicartola foi o jovem boêmio Albino Pinheiro, rapaz de 30 anos, que viria a ser definido pelo amigo jornalista Fausto Wolff como “o maior poeta que não escreveu um verso, o maior compositor que não escreveu um samba”. Albino havia surgido na vida do casal do samba de maneira inusitada: um dia, ainda na Rua dos Andradas, Zica recebeu a visita de um oficial de justiça para notificá-la com uma ordem de despejo do imóvel, que em breve seria demolido. A mulher de Cartola já estava começando a ficar nervosa quando Albino confidenciou ser grande admirador dela e do marido. Se tratava de um oficial de justiça fã de samba. A partir dali, Albino passou a frequentar as noitadas no antigo endereço e quando houve a mudança para a Rua
da Carioca tornou-se, juntamente com Zé Kéti, com o poeta Hermínio Bello de Carvalho e Sérgio Cabral, os nomes da linha de frente do lugar. Foi dele que partiu a ideia das noitadas das quartas-feiras, que atraíram um público ainda maior que o do restaurante.
O Brasil vivia um tempo de efervescência política. O governo do presidente João Goulart procurava implementar as reformas de base. A classe estudantil, simpática a essas mudanças, manifestava-se de todas as formas em busca de um Brasil novo. Houve uma maior valorização da cultura nacional, um direcionamento em busca das raízes do país.


Unindo-se em santo matrimônio

p. 93

Depois de duas horas sob o bisturi do cirurgião plástico Vilmar Ribeiro Soares, da Policlínica de Botafogo, no dia 11 de maio de 1964, Cartola submeteu seu nariz a uma plástica.
Dias antes da internação, alegava que o procedimento era por extrema necessidade, uma vez que começara a ter difi culdades para respirar:
— Vou fazer plástica por necessidade. Quando fui me consultar na Policlínica, sabia que já estava condenado a isso.
O problema causado pela rosácea incomodava bastante o compositor, principalmente porque sempre aparecia alguém para perguntar a causa daquele nariz extremamente escuro e enrugado.
 Após a cirurgia, ao ser entrevistada pelo jornal Última Hora, Zica brincou:
— Vou precisar de um patuá, porque com cara nova agora toda cabrocha vai querer ele.
 No dia seguinte, o Divino já estava de volta ao Zicartola para a inauguração de um novo evento no restaurante, a Ordem da Cartola Dourada. Ideia do compositor Hermínio Bello de Carvalho, era uma homenagem aos grandes nomes da música brasileira, que todas as quartas-feiras teriam seus retratos pendurados na galeria de honra da casa. A cantora Aracy de Almeida foi a primeira a receber a graça honorífica do samba, seguida por nomes como Tom Jobim, Dorival Caymmi, Elizeth Cardoso, Cyro Monteiro, Elza Soares e outros.
Todos terminavam por se apresentar para uma entusiasmada plateia. Hermínio Bello de Carvalho também foi responsável por trazer um jovem violonista e cantor de Madureira, chamado Paulo César. O jovem de 21 anos, fi lho de Benedito César de Faria, violonista do conjunto Época de Ouro, foi alimentado por música desde criança, e conheceu nomes como Pixinguinha e Jacob do Bandolim. Na sua estreia no Zicartola, dividiu o pequeno palco da casa com Zé Kéti, tocando violão e cavaquinho. O autor de “A Voz do Morro” aprovou o desempenho do novato, mas comentou com Sérgio Cabral.
— Temos que arranjar um nome pra esse garoto, Paulo César não é nome de sambista. Sérgio Cabral batizou o novo talento como Paulinho da Viola. O rapaz passou a se apresentar na casa com bastante frequência, mas sem receber nada, apenas pelo prazer de estar em meio a tantos ídolos. Uma noite, porém, quando os trabalhos já estavam encerrados, ao se despedir de Cartola, recebeu do mestre um dinheirinho para a passagem.
E considerou a pequena importância o seu primeiro cachê. Dentre as canções que emocionavam a plateia do Zicartola, estava “Opinião”, de Zé Kéti, um verdadeiro canto de resistência mais do que apropriado para aquele tempo de liberdade cerceada pela ditadura militar.
Podem me prender
Podem me bater
Podem, até deixar-me sem comer
Que eu não mudo de opinião
Daqui do morro
Eu não saio, não
Se não tem água
Eu furo um poço
Se não tem carne
Eu compro um osso
E ponho na sopa
E deixa andar
Fale de mim quem quiser falar

http://www.istoe.com.br/reportagens/274105_UM+GENIO+DO+SAMBA