24 fevereiro, 2013

A maratona de Manuel por Francisco Zaidan via Valeria Zez


Não tenha pena e sim orgulho, bem muito, de você. Ter um filho Especial não é tarefa para qualquer pobre mortal. É uma dádiva. São escolhidos por algo/alguém, para a acompanhar os Especiais na missão que tem nesse Planeta.
Falo por experiência Vivida: meus primos tiveram o primeiro filho Especial e quando pivete, nas férias/fim de Semanas, ficava com a Segunda filha deles que nasceu sem problemas. 
O Tato era Lindo. Inteligente. Meu primo tinha uma Fuscão que quando chegava em casa, Tato Sorria ao ouvir o ronco do carro. E ao entrar, se ele fosse pegar primeiro a menina antes dele, ele reclamava. Um Ser Especial preso num corpo imóvel. Todos paparicavam ele mas poucos viam o esforço dos pais, não só nos cuidados com o filho, mas também  nas dores que essa limitação causavam neles.
Quando digo que Admiro e muito pessoas como você, não é da boca para fora. Mesmo com pouca idade, mas sempre observadora, via as Alegrias/dores nos olhos de meus primos. Poucas vezes senti pena deles, e sim muito Orgulho de serem da minha Família e Viver aquela experiência junto. Aprendi muito com eles. Mesmo com tudo que passavam no dia a dia, chegava fim de Semana, saiamos para festas, eles bebiam/dançavam para afastar toda tristeza que os perturbava e Comemorar as Alegrias que tinham na Vida. 
Minhas Eternas Homenagens e Respeitos a todos vocês!!!


  • Só hoje que consegui ler .........e tive que procurar esconder (nem todos viram) até senti pena de mim!!Bjoss
Manuel gosta de futebol, não tanto quanto ama o rádio, o ideal são os dois juntos formando a sinfonia perfeita em seus ouvidos. Herança familiar, simples gosto, aleatoriedade, não sei o porquê, só sei que assim o é. Manuel ouve rádio como um eterno enamorado transa com sua amada, não basta ouvir seu ruído, é preciso sentir, tocar, contemplar com os olhos (mesmo que míopes), ele não admite ouvir rádio com a luz apagada, o ritual não seria completo.
Manuel nunca andou, nem nunca andará, está deitado, vive deitado, morrerá deitado como todos os estúpidos que andam. Manuel é a existência em seu estado bruto, nada o protege, seus pais o amam e ele geme de dor, seu irmão amaldiçoa a sociedade que, em retribuição, vomita de desprezo em sua face. Manuel está em uma maratona, mas antes do tiro de largada roubaram seus tênis, transpassaram seus órgãos vitais e quebraram seus joelhos, ele não completará o percurso. E não digam a ele que haverá outras corridas mais nobres e duradouras, “De que me vale ser filho da santa? Melhor seria ser filho da outra, outra realidade menos morta...’. Manuel sabe, só há uma corrida, não há justiça, não há galardão, não há uma segunda chance, ele perdeu, simples e cru como uma partida de futebol.
Sim, Manuel é um santo, mas não é herói. Um santo homem feito na derrota, na pura física e na negligência de uma suposta “meta”. Manuel não vive, não corre, não chuta a bola, não beija, não se embriaga, sua “balada” é uma conspiração noturna em seu pequeno quarto, mas mesmo assim nunca ouço cogitar morrer, seria tão lógico e compreensível. Manuel adia enquanto ouve rádio. Já a vida, em seu lado banal e igualmente nefasto, é tão cruelmente acessível a ele, não há mosquito que não o incomode, escoliose que não o entorte, nem pedra renal que lhe é indiferente. Com uma risada de palhaço macabro, ela diz: “sou assim, democrática em meus desprazeres”. Esqueceram de alertá-la que ela é desigual, tirana, amoral e sem coroação retroativa para os cansados e mancos que nunca gozaram de seus prazeres mais triviais. 
Só os religiosos que “coam o mosquito e engolem o camelo” ou os aposentados, derrotados pelo tempo e pelo peso das supostas futilidades que hoje condenam em sermões e carrancas de homens decentes que nunca foram, diriam para Manuel que a quadra onde jogaram o jogo, o whisky celebrado com os amigos, o carro onde dirigiam sem rumo e a faculdade onde conheceram a futura mãe de seus filhos, são coisas de juventude que hoje não passam de refugo para uma paz espiritual na velhice. Não sejam cruéis tentando ser bonzinhos, nem mintam para vocês mesmos, todo prazer é fútil, a dor que é real, vem da entranha e para lá sempre volta, como um tatu volta para sua toca. Mas o prazer, mesmo que ínfimo e desprovido de qualquer grandeza que o legitime, é o que faz com que todos não subam aos precipícios como desesperados beneditinos ou como os judeus do Monte Massada diante dos romanos.
O relógio marca 15h06min do dia 18, quarto andar do Hospital São Domingos, um enfermeiro entra no quarto, confirma o nome junto ao pai do enfermo, sim, é ele, Manuel. Manuel está na maca, ele está pronto, lentamente o enfermeiro de voz fina e reconfortante retira a maca do leito e, em um corredor escuro e desabitado de alma, leva Manuel até que os dois somem do alcance da visão de seus familiares. Neste momento um forte trovão ecoa pela janela, um presságio? Não seja tolo, Manuel foi concebido como um bruto prematuro, não há trombetas que tocam quando ele canta, nem anjos que choram quando ele adoece. Um charuto só às vezes é simplesmente um charuto, Manuel sempre é só Manuel, nada além, impossível ser aquém.
A cirurgia acabou, ele voltou ao quarto, sua mãe dorme exaurida pela tensão e pela dengue; seu pai chora às avessas, de fora para dentro; seu irmão olha as janelas com grades e se insulta, não tem culhões para seu desejo; um médico e uma enfermeira novata entram em uma sala de limpeza, não antes do semi-deus apalpar a bunda da coitada; Manuel dorme, caótico de símbolos e repleto de significados que só ele sabe.
O relógio marca 03h19min, Manuel está com febre, suas pernas tremem freneticamente, ao mesmo tempo fita fixamente seus olhos pela fresta da janela, um olhar perdido rumo ao céu sem estrelas. Manuel continua calado, mas lembre, Manuel gosta de Futebol e é canhoto; Manuel há 10 minutos não para de chutar o vácuo, e não me digam que isso é firula. Manuel jamais disse, mas seu irmão tem certeza, naquele exato momento ele via seus gols refletidos naquele céu sem estrelas. A enfermeira, após 10 minutos na sala de limpeza, entra no quarto e afere a temperatura de Manuel, 38,8 graus Celsius, o milagre do chute no vácuo não passou de delírio febril. Nada faz sentido, Manuel não carece de sentido, ele será sempre o santo dos seguidores de causa nenhuma, ele será sempre um final em-si, uma tragédia silenciosa e sem moral da história.
Imagem: @CowboySL
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